Gabriel Oliveira F. Arruda
Antes de adentrarmos mais uma vez na cabeça da diretora e roteirista Julia Ducournau para falar sobre Titane, vale a pena olhar cinco anos para trás e comentar seu poderoso filme de estreia, Grave. A mistura elegante de drama coming-of-age com terror corporal dá um sabor inteiramente próprio à obra, subvertendo clichês dos dois gêneros e clamando para si seu lugar na cultura cinematográfica como um dos filmes mais perturbadores dos últimos tempos.
Carregando consigo a expectativa dos desmaios provocados durante sua abertura no Festival de Toronto em 2016, a produção franco-belga narra a chegada da vegetariana Justine (Garance Marillier) à faculdade de Veterinária, onde ela encontra com sua irmã, Alexa (Ella Rumpf) e os estranhos ritos da maturidade acabam acordando nela uma fome por carne nunca antes vista. A partir daí, o longa explora as similaridades entre o ensino superior e o reino animal e os rituais tribais que envolvem a passagem da adolescência para a vida adulta. E claro, uma dose saudável de canibalismo.
À primeira vista, a parte verdadeiramente aterrorizante de Grave é o quanto ele não parece um filme de terror. Justine parece só uma adolescente ansiosa e assustada por finalmente seguir os passos da família (seus pais também foram à mesma faculdade que ela e a irmã), com a trilha sonora suave e reconfortante de Jim Williams nos deixando seguros de que tudo está, por um momento, bem. À noite, quando essa trilha acaba, as coisas começam a ficar mais estranhas: os veteranos tratam os calouros literalmente como gado, forçando-os a andar de quatro enquanto juram fidelidade aos mais velhos, antes de serem conduzidos à uma festa.
Várias das cenas mais deslumbrantes do filme são ambientadas em festas, com a câmera de Ruben Impens sempre pressionando sua personagem principal para frente, em um plano sequência caótico e preciso em igual medida, explorando intimamente a pele e os sentimentos de Justine conforme estes se transformam. Plano esse que termina com a figura sinistra de um carneiro de pelúcia sendo enforcado enquanto os estudantes em volta dele festejam como se não houvesse amanhã.
Se a faculdade é então a transição de presa para predador, o próximo passo é o consumo. Em um ritual posterior, Alexa e os outros veteranos pressionam Justine para que ela coma a carne de um animal preservado em vidro. A liminaridade da condição de Justine, sem fazer parte de sua família ou de seus colegas, marca a performance de Marillier, que anda na corda bamba entre a ansiedade e a arrogância de alguém que sabe que tem que pertencer para sobreviver.
Até mesmo em seu primeiro curta, Junior (com Garance Marillier no papel de uma pré-adolescente também chamada Justine), a preferência de Ducournau por personagens em situações transitórias já se fazia presente, assim como seu talento para traduzir experiências familiares em estéticas macabras. Após dar a primeira mordida, algo surge em Justine; primeiro como uma curiosidade, mas depois como uma fome.
A linguagem do Terror em Raw pode ser simplesmente descrita em agonia. Conforme acompanhamos as transformações físicas pelas quais a protagonista passa, a intimidade da câmera nos obriga a adentrar essa metamorfose em seus mínimos detalhes, podendo apenas observar enquanto Justine se coça obsessivamente até ficar quase em carne viva. Cada virada brusca que a personagem dá é sentida pela audiência vividamente, nos deixando alertas a cada detalhe da atuação de Marillier e de outras personagens, culminando na infame cena que envolve depilação íntima e um dedo decepado, onde a trilha sonora de Williams mais uma vez se transforma para refletir os horrores que acontecem na cena:
“Eu usei uma linguagem musical reconhecível (do início do Barroco) que tem um estrito código harmônico de dissonância contínua e resolução que vai contra ao caos gentil que está na tela. A estrutura sólida da música levanta um espelho para o colapso moral da cena, mas, para que se alinhasse com o choque da audiência eu usei uma instrumentação distorcida, bastante violenta.”
– Jim Williams em entrevista para The Film Music Institute
Como diz o ditado, você é aquilo que você come, e o que Julia Ducournau ousa perguntar é “o que você é quando come outra pessoa?”. Talvez a parte mais perturbadora de toda a experiência seja como, mesmo depois desse “colapso moral”, o filme se recusa a tratar suas personagens como monstros, porque o interesse de Ducournau em rituais que ilustram a maturidade a impede de cair nos clichês do gênero e isolar completamente o horror de sua audiência. A todo momento sua fotografia coloca humanos e animais em um paralelo aterrador, nos implorando para realmente interrogar a diferença entre um a outro, deixando de lado nossas pré-concepções sobre civilização e sociedade. Se você está assustado enquanto vê Grave, você na verdade está sentindo medo de si mesmo:
“Você tem essa sensação quando morde o braço de alguém brincando, de que você quer ir um pouco além, mas você não o faz porque tem um modelo moral. Essa coisa está em nós, apenas não queremos vê-la. Então eu pensei, já que meus personagens sempre parecem ser monstros lá no fundo, eu queria que a audiência se sentisse como um monstro também, e que entendesse o que ela fazia. Porque afinal, todos nós somos monstros.”
– Julia Ducournau em entrevista para o The Guardian
Há algo incrivelmente intoxicante em Grave. Algo que se insere no seu corpo sem ser convidado, que grava o frame de Garance Marillier sentada no chão delicadamente mordendo a carne de um dedo decepado como se fosse um churrasquinho. Poderíamos passar horas discutindo individualmente cada um de seus aspectos, mas é na integração de seus diferentes elementos que sua sinergia se encontra.
Sua construção se assemelha, de muitas maneiras, ao preparo de um prato de comida em um restaurante cinco estrelas. Não há excessos; cada ingrediente é utilizado com a medida exata e proporcional, sua mistura é precisa, sutil e crocante. Tudo na mesa te prepara para consumir algo fino e superior e, assim que você dá a primeira mordida, a cozinheira chega perto do seu ouvido e revela que você está consumindo a si mesmo. É uma experiência bizarra, familiar, deliciosa e enojante, estranha e elegante de todas as maneiras que não combinam, mas que juntas tornam algo que já seria memorável em uma obsessão instantânea e apetitosa. Cinco anos depois de ser lançado, há poucos filmes que encham o paladar tanto quanto Grave.
Bon appétit.