Layla de Oliveira
A nostalgia é poderosa, e faz bem para nós. O esforço para relembrar alguma memória querida a partir fotos antigas, músicas e outros tipos de mídia possibilita facilitar o autoconhecimento e a conexão sentimental, aumentando a vitalidade e dando esperanças para o futuro. Por isso, muitos revivals e reboots estão preenchendo nossas TVs, cinemas e playlists; o consumidor merece receber essa felicidade.
Então, quando a Netflix anunciou que estava produzindo Fate: A Saga Winx, uma série baseada no desenho italiano O Clube das Winx, a reação não poderia ser outra. Foi uma felicidade quase que generalizada, pois muitas pessoas cresceram e amaram aquelas seis garotas poderosas e incríveis que derrotavam as forças do mal, com direito a transformações mágicas e tudo o que tínhamos direito.
A animação original acompanha Bloom, uma adolescente que vivia normalmente na Terra, mas que a partir do momento em que ela encontra Stella, princesa de Solária e fada da luz do Sol e da Lua, tudo muda; a própria protagonista se descobre uma fada, com um poder ancestral e muito poderoso. Ela então segue para Alfea, uma escola especializada em ensinar fadas a controlarem seus poderes para se tornarem guardiãs, e lá conhece outras meninas: Flora, uma tímida fada da natureza; Musa, a fada da música e Tecna, fada da tecnologia. Na segunda temporada, as meninas conhecem Layla, princesa de Andros e fada das ondas, e ela se junta à equipe.
O criador da animação, Iginio Straffi, percebeu a escassez de desenhos de ação com protagonistas femininas; então resolveu introduzir uma série animada que acompanha meninas jovens, pois ele estava interessado em “explorar o lado psicológico” de uma transição para a vida adulta. Inspirando-se em animações japonesas e juntando-os com elementos europeus, Straffi modelou cada uma das personagens baseada em alguma celebridade popular no início dos anos 2000: Bloom foi inspirada por Britney Spears; Stella, por Cameron Diaz; Jennifer Lopez foi a referência usada para Flora; Pink para Tecna; Lucy Liu para Musa e para Layla, a modelo foi Beyoncé. Essa foi uma estratégia usada pelo italiano para “representar as mulheres da atualidade”.
Por conta do desenho ser tão memorável e icônico, a Netflix tinha uma grande responsabilidade nas mãos, pois a expectativa era enorme. Então, o estúdio resolveu deixar claro que existiriam algumas diferenças entre a série live-action e o material original, como a substituição de Flora por Terra, a junção das Trix em uma personagem só, e a ausência de Tecna. Todas essas mudanças já deixaram os fãs do desenho com um pé atrás, especialmente a falta perceptível de uma das meninas; porém, isso não afetou drasticamente a empolgação do público, que ainda mantinha-se animado com a adaptação.
O showrunner da versão da Netflix, Brian Young, foi um dos motivos para os fãs se manterem calmos: ele prometeu que todos que amavam as Winx quando crianças iriam se sentir contemplados pela série, e adicionou que ela teria um tom mais sombrio, voltado para agradar o público jovem adulto, “uma nova versão do desenho para agradar quem cresceu o assistindo”. Contudo, a partir do momento em que o trailer de Fate: A Saga Winx foi lançado, o desapontamento tomou conta de muitos, eu inclusa. Mas ei, depois de uma tempestade vem o sol! Então, ainda havia esperanças. Pequenas, mas elas estavam lá. E no dia 22 de janeiro, a série foi lançada e tudo se concretizou; no meu caso, foi um pesadelo mesmo, e por muitos motivos.
Primeiro, o próprio plot do seriado, que pode ser resumido em um monte de clichês de séries adolescentes misturadas no liquidificador, mas com uma pequena pitada de tempero de fada. Basicamente, a história contada é de Bloom (Abigail Cowen), que chega ao mundo mágico de Otherworld para estudar na escola mágica de Alfea depois de um acidente que envolveu seus pais, e mais especificamente a mãe, com quem Bloom não possui uma boa relação. Além de toda a questão eu-sou-incompreendida-pelos-meus-pais-mas-no-final-eu-entendo-que-eles-me-amam-e-só-querem-meu-bem, usada em praticamente 97% de toda mídia adolescente, um dos conflitos que envolvem a nossa ruivinha é um triângulo amoroso. Logo no primeiro dia, ela conhece Sky (Danny Griffin), um especialista, e há/era pra ter tido uma conexão instantânea entre os dois, mas aí aparece Stella (Hannah van der Westhuysen), que além de ser a guia de Bloom no primeiro dia e sua colega de quarto, também é a ex-namorada dele. Ou atual namorada. É complicado.
Enquanto frequenta as aulas em Alfea e aprende a controlar seus poderes, Bloom divide um quarto com outras meninas além de Stella, sendo elas Aisha (Precious Mustapha), Terra (Eliot Salt) e Musa (Elisha Applebaum). Todas elas possuem habilidades totalmente diferentes, porém possuem algo que Bloom não tem: a vivência em um território mágico. Ela então se sente deslocada, e procura saber mais sobre as origens de seus poderes de fada, tendo em vista que seus pais são humanos; ao questionar a diretora Farah (Eve Best), percebe que existe algo sendo escondido, então ela mesma decide saber mais sobre si.
Não é um enredo totalmente arrasador, e muitas vezes Fate: A Saga Winx falha em convencer o espectador em certas coisas, utilizando tantas frases clichês e supérfluas sobre feminismo ou qualquer outra coisa que parecem que foram compradas em liquidação. Mas tudo bem! Mesmo sendo uma farofa retirada diretamente de outras dez séries, é algo necessário de vez em quando. Entretenimento é entretenimento, e às vezes o que importa é servir como diversão. Respeito totalmente, e até porque é algo que pode melhorar numa segunda temporada, quem sabe. Nada de mais.
Mas certas coisas eu não respeito, não entendo e especialmente, não perdoo. A primeira delas é a representação da amizade das Winx. No desenho, a amizade entre as seis meninas é construída na base do respeito, entendimento, apoio e amor, e é um dos motivos para ser tão marcante nas nossas memórias; enquanto isso, na adaptação da Netflix, a relação é facilmente resumida em uma única palavra: conveniência. Elas só se tornam amigas porque moram juntas, e consequentemente, o problema de uma delas afeta a vida das outras. Nos poucos momentos em que é possível testemunhar uma ligação mais forte entre as personagens, ela ocorre somente entre duas delas, tornando aquele discurso de “estamos aqui para o que precisar!” difícil de acreditar.
Não só isso, mas a personalidade das próprias fadas mágicas de Alfea foram alteradas. Bloom foi de corajosa e altruísta para simplesmente revoltada e impulsiva; Flora, que era tímida, foi substituída por Terra, que é mais falante, porém isso é demonstrado como inconveniente muitas vezes durante a série; Layla/Aisha, a princesa que sempre viveu de maneira isolada mas se mostrou valente, virou apenas a ‘amiga negra’ e responsável; Musa, cujo grande poder era a música, apenas a usa como uma válvula de escape, e isso talvez seja o menor dos problemas. A pior de todas foi Stella, pois parece que toda a informação que a produção tinha sobre a personagem era princesa e loira; assim, conseguiram fazer uma patricinha do bem à la Cher Horowitz virar a Regina George que tem poderes de luz.
Isso sem falar no tal do triângulo amoroso já citado. Imagino que o propósito dele seja mostrar que tudo bem se surgir algum problema por conta de um garoto. “Ele pode ser resolvido!” “Diga não à rivalidade feminina!” Bem, se Fate: A Saga Winx queria dizer não para esse tipo de coisa, para quê enfiar isso no meio da história? Sabe, existem muitas outras coisas que podem incitar algum conflito entre duas amigas. A relação de codependência emocional entre Sky e Stella é até engolível, mas depois de tanta briga, é resolvida de maneira tão simples que a única reação possível é um grande ‘ué?!’.
Existe outro problema que vou ter que comentar, desculpa. As roupas. A droga das roupas. A única coisa que posso dizer que admiro é a consistência, pois no momento em que eu descobri que a figurinista, Catherine Adair, trabalhou em Desperate Housewives, tudo fez sentido. Baseando-se nos quatro elementos, couro, jaquetas bomber, brilho e tweed, foi composta a caracterização dos personagens, que aliás são jovens de 16 a 18 anos, mas parecem ter uns 30 graças aos trajes.
Em pleno renascimento da estética dos anos 2000, o auge do Y2K, Fate: A Saga Winx resolveu apostar em vestimentas chatas; por favor, o impacto na moda que essa série deveria ter. Seria um fechamento perfeito para essas tendências, com expectativa e classe; mas não, vamos nos restringir ao monocromático, porque fogo é vermelho, água remete ao azul e verde-musgo é claramente uma mensagem subliminar para a terra.
E quando você acha que não pode piorar, surgem duas novas cabeças no lugar da que acabou de ser cortada. Infelizmente presente em muitas produções, a série Fate: A Saga Winx não conseguiu escapar do famigerado whitewashing. As vítimas, Musa e Flora/Terra, são representantes da Ásia Oriental e de países latino-americanos, respectivamente; que foram substituídas por mulheres que, se não forem totalmente brancas, são white-passing.
No material original, o planeta natal de Musa, Melody, é uma clara referência a países como China, Japão e Coréia do Sul, o que compõe uma parte importante do desenvolvimento da personagem e também da representação presente no grupo. Já a situação com a Flora é um pouco diferente, afinal, são personagens diferentes. Terra até a menciona em um episódio, dizendo que elas são primas, o que significa que talvez ela realmente exista nos moldes originais. Mas então, para quê aconteceu a troca? Por que não colocar a Flora como uma das personagens?
Bem, uma das prováveis respostas seria por conta da diversidade de corpos e a representação de mulheres gordas na mídia. Brian Young disse ao The Guardian, relembrando o desenho, que “ninguém é assim. Era a coisa mais importante para mim que todas as crianças pudessem sentir que se viam nisso”. Porém, mesmo este argumento se torna absolutamente fraco por dois motivos: o primeiro é que uma minoria não exclui a outra, e Terra poderia muito bem ser representada por uma atriz gorda e latina; e também, na série, Terra é caçoada em muitos momentos por ser gorda, além de ser uma figura irritante por querer agradar a todos. É assim que se abraça a diversidade nos dias de hoje, produção?
Eu entendo, juro que entendo mesmo, essa vontade que grandes estúdios têm de fazer materiais mais sombrios e realistas para os adolescentes de hoje, até porque isso não é uma novidade, considerando séries como Gossip Girl, Pretty Little Liars e muitas outras que fizeram sucesso na década de 2010. Apesar disso, gostaria de fazer um comunicado: fazer menção a sexo e drogas a cada dois minutos não torna as coisas maduras, só irritantes. E mesmo com tantos problemas, Fate: A Saga Winx não precisava colocar um filtro cinza e escuro sobre tudo! Tenha como exemplos Skins, que tem tanto adolescente problemático a cada metro quadrado e cores fortes ainda existem. E Euphoria, pelo amor.
Resumo da obra: não tenho problemas com o seriado em si, e sim com o fato de que foi vendido como uma adaptação de algo muito querido pelas pessoas. Se quisesse usar como inspiração, ótimo. Se quisesse fazer uma adaptação mudando algumas coisas, ótimo, porque é isso mesmo que acontece; mudanças ocorrem para fazer com que o material original siga as normas da plataforma escolhida. Só não escolha ignorar completamente muitas das coisas que tornaram-se importantes para muitos dos consumidores e fãs das obras, e ainda por cima disfarçar e vender como se fosse nostalgia em forma de seriado. Porque em Fate: A Saga Winx, isso com certeza não aconteceu.