Nilo Vieira
Após a estreia em cinemas brasileiros ontem (27), as comparações mais constantes em críticas sobre Baby Driver (ou Em Ritmo de Fuga) serão com o clássico Cães de Aluguel (1992) e/ou a obra-prima de Nicolas Winding Refn, Drive (2011). Justo, dado a proposta comum de uma violência classuda em todos. No entanto, estes paralelos parecem tirar o foco do real diferencial do novo filme de Edgar Wright: a abordagem da música.
A trilha sonora é essencial no enredo. O protagonista Baby (Ansel Egort) vive com um iPod ligado e fones nos ouvidos, tanto para abafar os efeitos do tinnitus como para se concentrar durante as fugas em alta velocidade. Sua conexão com o resto do mundo é ditada por canções – as mesmas responsáveis por seu distanciamento aparente dele. E, felizmente, essa relação tão rica da música com ambientes, momentos e pessoas não para aqui.
Impressiona a linguagem metalinguística escolhida pelo diretor. As faixas reforçam a estética cool transmitida pela câmera, e a masterização precisa (sempre colocando-as em camadas frontais) joga o espectador direto para dentro do longa. Wright parece trabalhar situações em cima da trilha na maior parte do tempo, ao invés de apenas preencher requadros com os timbres mais adequados.
E faz isso de maneira bastante lúdica. Os diálogos nos lembram do comportamento cotidiano da música na vida de qualquer um, ao passo em que as brincadeiras do diretor sobre a inserção sonora dentro de um filme criam uma ambiguidade deliciosa: é a ruptura de clichês ou apenas uma denúncia consciente deles? Ao inseri-los em um gênero hollywoodiano já quase orgulhoso dos próprios pastiches, a coisa só toma proporções ainda mais divertidas.
É curioso situar Em Ritmo de Fuga ao lado de outros títulos recentes para observar o quão certeira é sua abordagem sonora. Assim como em La La Land, aqui também temos o apelo retrô (boa parte das canções da trilha datam dos anos 60 e 70, e o protagonista grava fitas). Ao contrário de Damien Chazelle, porém, Edgar oferece a sátira meta de clichês não como uma fantasia distante carérrima, e sim como um retrato intimista de como a música impacta o ser humano.
E, acima de tudo, que sua apreciação não precisa cair em questões de status; as discussões de Bats (Jamie Foxx) e Baby sobre música explicitam que o ego sempre emerge, mas que este não precisa ser gourmetizado como na premiada saga pela salvação do jazz. Compartilhar interpretações, ao invés de competir sobre conhecimento. É possível se divertir falando besteira sobre discos com os outros – e ainda permanecer amigos ao final da conversa!
Ainda na safra do último Oscar, vale relembrar o grande campeão. Em Moonlight, a paleta é eclética e também reverbera o valor emocional sonoro. O ato de aumentar o trap pesadão no rádio do carro ou de colocar aquela canção romântica no jukebox escancara escapismos, espontâneos no dia-a-dia das personagens. Músicas específicas podem despertar sentimentos diferentes em cada um, mas a capacidade receptiva perante a arte é algo universal. Neste caso, pode-se dizer que o acerto maior de Baby Driver é expandir a experiência sensorial para além de algumas cenas específicas, como fez Barry Jenkins.
Baby Driver e a música na era digital
Com essa extensão para quase duas horas ininterruptas musicadas, Edgar Wright corria o sério risco de acabar gerando um filme playlist, onde a trilha sonora apenas enfeita um vazio substancial e ensaia virtuosismo baseado em namedropping de referências. É o caso do último longa-metragem de Terrence Malick (Árvore da Vida), Song to Song.
Com elenco invejável (Natalie Portman, Rooney Mara, Ryan Gosling) e participação de músicos consagrados (Patti Smith, Red Hot Chili Peppers, Johnny Rotten), o que poderia ser uma bela coleção de reflexões existenciais interligadas por música acaba se tornando o equivalente cinematográfico a álbuns pop na era do streaming: funciona em frações curtas, mas o conjunto se mostra apenas como um cansativo exercício megalomaníaco do autor. A ambição de Malick em abordar trocentos temas profundos sob uma lente moderna (caso semelhante ao de Aquarius) se transforma no famigerado “atirou pra tudo que é lado”.
Como as recentes empreitadas do rapper Drake, a vontade que surge é a de só recortar os melhores momentos de Song to Song e voltar a eles quando der na telha. Revisões na íntegra soam como um conceito mais desafiador que a diversidade confusa sugerida pelas obras em si. Mais um ponto para Wright, que opta por abraçar o teor plástico dos filmes de ação e pincela observações musicais de modo prático – e não divagações simbólicas.
Simbólico também é palavra-chave para Dunkirk, aguardado longa-metragem de guerra, assinado por Christopher Nolan. Além da presença de Harry Styles no elenco – comprovando que, apesar do buxixo recente, o britânico ainda é um belo rostinho bonito no mainstream – o uso abusivo da trilha sonora é destaque negativo. A inserção de drones ou orquestrações a cada quadro denuncia: apesar da estrutura narrativa fragmentada dar esperanças, Nolan não desistiu de seu didatismo. Perseguições em aviões e afogamentos, onde o som ambiente adiciona tensão natural, perdem impacto com um fundo em volumes absurdos. O mesmo se aplica às canções: quais sutilezas se preservam em texturas impostas em toda e qualquer ocasião? É a loudness war nos cinemas.
Já Em Ritmo de Fuga não pesa a mão nem quando seria o mais natural. Se o petardo de Edgar Wright não cabe na categoria de musical, pode se gabar como um dos filmes mais respeitosos com a música em anos. O olhar é muito simples: a arte dos sons não deve ser encarada como órgão separado nas telonas. A música como integrante da vida, afinal. Sem nunca subestimar o espectador, cá está um produto digno de horas no repeat. Nossos ouvidos e olhos agradecem.