A depressão na arte, nua e crua: Parte I

nick drake pink moon gatefold full cover 1972

Nilo Vieira

O fim do semestre letivo se aproxima e, junto dele, o início do outono também. O ritmo acelerado e sufocante imposto pelos trabalhos finais, somada à alta tensão política que vivenciamos na modernidade líquida, só acentua o tom melancólico da estação. Neste cenário, não há trilha mais pontual que clássicos de cantautores solitários do folk – muitas vezes armados apenas de um violão e uma voz frágil.

Possivelmente, o maior exemplo dessa estética se encontra no canto do cisne do britânico Nick Drake. Lançado em fevereiro de 1972, Pink Moon completa a trilogia de álbuns lançados por Drake ainda vivo, sucedendo o orquestrado Five Leaves Left (1969) e Bryter Later (1971), notável por seus tons jazzistas. Embora os dois primogênitos já tivessem mostrado exímias habilidades de composição, o auge contraditório da carreira de Nick viria mesmo no terceiro disco.

Duas raridades em uma: Nick Drake fotografado E sorrindo
Duas raridades em uma: Nick Drake fotografado E sorrindo

Apesar de seu talento artístico, o músico sofria de uma depressão pesada: sua timidez o impedia de dar entrevistas e tocar ao vivo, e doses colossais de remédios lhe eram comuns – a última delas o matou, em 24 de novembro de 1974 (sua irmã, a atriz Gabrielle Drake, afirma que não foi um suicídio). A vendagem de seus discos só chegaria em números consideráveis no ano seguinte, após a publicação do obituário “Requiem for a Solitary Man”, para então sua obra cair nas graças de músicos como Robert Smith, que inclusivo batizou sua banda em homenagem à uma canção de Drake.

Com apenas 28 minutos divididos em 11 faixas, Pink Moon é uma verdadeira obra-prima. Com exceção de algumas notas ao piano na faixa-título (que tanto podem representar um aceno de despedida do compositor ao instrumento e seu passado como servir de valsa suave no tom apocalíptico da canção), o álbum é totalmente centrado na interação da técnica aflorada no violão com a voz quieta do músico. A gravação crua realça o tom intimista em níveis quase invasivos: na instrumental “Horn”, por exemplo, é praticamente possível visualizar o artista recolhido em um canto, quase arrebentando as cordas de seu instrumento nas notas agudas – ainda que sua execução passe longe da agressividade – ao tentar encontrar algum sentido naquela sequência.

Esse tom de intensidade “contida” permeia o álbum todo. A fluência das mãos de Nick Drake é palpável, e o uso de afinações abertas só comprova o seu domínio no violão. Mas é no âmbito lírico que reside a real força de Pink Moon, com uma ampla gama de explorações acerca da depressão: “Road” traz uma mensagem curta e grossa sobre os sintomas da doença, ao passo em que “Know” explora a distância que ela traz – os gemidos iniciais e a entrega cambaleante dos versos nos informam o estado grave que atinge o artista, cuja dificuldade de expressão atingiu até sua arte.

Enquanto “Free Ride” se revela um gesto explícito de Nick tentando criar uma conexão com outra pessoa, “Place To Be” mais soa como uma declaração acanhada. Em menos de três minutos, aborda a nostalgia, a luta interior do compositor, a sensação de deslocamento e, por fim, sua solidão. Poucas vezes a melancolia foi tão bem encapsulada em versos; o mesmo pode ser aplicado a “Parasite”, quiçá a letra mais cortante do registro. Nela, a angústia é tratada com alegorias, metáforas sociais, religiosas e mesmo sexuais, e ainda há espaço para uma violência platônica: “Making the moon for fun/ And changing a rope for a size too small/ People all get hung.

O verso com a figura lunar mostra que uma retomada à faixa-título nos é necessária aqui. Não só pela música em si, mas por toda a carga semântica do contexto; curioso reparar, por exemplo, que apesar da capa fazer jus ao som – a expressão facial da criatura é melancólica, a xícara é uma provável referência ao Reino Unido e, finalmente, o selo com um foguete dos EUA é bastante pontual ao tom fatalista da canção homônima – não se trata de uma releitura literal dele; por que a lua da capa não é cor de rosa, afinal? Por que colocar uma faixa de mensagem tão ambígua logo como abertura? Seria ela uma metáfora para a expansão da depressão ou um desejo de vingança amargurado do compositor? São questões que não pedem e nem merecem respostas universais exatas.

Todavia, pode-se dizer que essa “vingança” aconteceu. Com o passar do tempo, Nick Drake virou um herói cult e se firmou no cânone dos músicos folk. Seus discos, antes menosprezados por crítica e público, agora são objeto de desejo de colecionadores, além de sua música ter figurado até em um comercial da Volkswagen. A opção da gravadora Island em incluir um inlay que emula o papel gasto dos vinis da prensagem original em novas edições de Pink Moon soa como um pedido de desculpas: agora que o artista se foi, há de se compensar (no caso, reproduzindo) até os mínimos detalhes do período onde ele ainda era vivo.

Reprodução do encarte físico do álbum
Reprodução do encarte físico do álbum

Porém, a parte do encarte do LP que realmente se destaca é a foto do músico do lado direito do gatefold. A imagem, negativada até ganhar o aspecto de uma gravura fantasmagórica, é o retrato exato da aura de Nick Drake: direta, sombria, visceral e, embora tímida, imortal. Este legado ecoaria com força total quase exatos 25 anos depois, com seu maior herdeiro e seu magnum opus: era o norte-americano Elliott Smith e seu Either/Or (1997).

Ainda que musicalmente a obra-prima de Smith tenha tons levemente mais movimentados, as semelhanças são inegáveis. Estão ali as afinações diferentes de violão, os vocais baixos, a gravação lo-fi e a tristeza onipresente. Infelizmente, as coincidências não param por aí: Elliott também sofria de uma depressão severa, aditivada pelo abuso de álcool e drogas ilícitas.

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Either/Or se inicia com o som de uma porta abrindo e não poderia ser diferente. Ainda mais descritivo que Nick Drake, as narrativas de Smith não raro são desconfortáveis – o que talvez seja o verso mais icônico do disco, em “Rose Parade”, diz: “e quando eles limparem a rua, serei a única merda deixada para trás” -, e a instrumentação mínima só colabora para o clima claustrofóbico do álbum.

“2:45 AM” soa exatamente como o título propõe: um relato insone de um indivíduo profundamente deprimido, arranhando o violão discreta e repetidamente até o ponto de alguma libertação: os outros instrumentos surgem exatamente no momento onde o eu-lírico anuncia que nunca irá voltar. O mesmo acontece em “No Name No. 5”, com a diferença de que agora as pessoas ao redor de Smith foram embora.

Embora a honestidade visceral de Elliott seja latente, não deixa de ser interessante reparar que a letra de “Cupid’s Trick” foi a única a não ser impressa no encarte oficial. Segundo o próprio músico, trata-se de uma composição realizada sob a influência de substâncias e que, quando sóbrio, viu que as letras não faziam sentido e eram infantis. Ora, se o disco inteiro lida com questões complicadas, por que censurar exata e somente uma música dele? É a fragilidade do artista dando o recado: nós podemos nos entregar, mas jamais o faremos por completo. Há sempre uma parte que sentimos necessidade de esconder dos outros.

Desse modo, não é de se espantar o quão imediata é a empatia causada por Elliott Smith. Ainda que acanhado, sua capacidade de dar a cara à tapa e traduzir seu desespero é exemplar; as metáforas até dão as caras, mas permitem mais ligações diretas do que ocultam algo. Não é demérito algum classificar sua música como romântica, no sentido tradicional da coisa (ainda que “Between the Bars” e “Say Yes”, de fato, soem apaixonadas). No fim, todos nos agarramos a alguma utopia para seguir em frente; a de Elliott é o amor de e por outra pessoa.

Apesar de o diretor Gus Van Sant ter impedido que Smith morresse obscuro como Nick Drake – para o filme Gênio Indomável (1997), utilizou três músicas de Either/Or e uma inédita, “Miss Misery” na trilha, o que rendeu a Elliott uma indicação e apresentação no Oscar de 1998 -, quis o destino que seu desfecho fosse igualmente trágico. Em 2003, foi encontrado em seu apartamento com marcas de duas facadas no peito e, assim como Drake, a perícia não conseguiu concluir se foi ou não suicídio.

Mas, a bem da verdade, os verdadeiros finais que devem prevalecer não são os físicos, e sim os dos discos. Tanto Pink Moon quanto Either/Or reservam um sopro de esperança em suas últimas canções, mesmo que as dez antecedentes sejam pedradas. No fim, é a arte imitando a vida (ou vice-versa). Não há problema em reservar um dia para ficar no quarto chorando, contanto que se lembre de sair de casa depois – porque até mesmo as folhas caídas do outono têm sua beleza.

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