Julia Mendonça
“Os colegas que vieram ontem me disseram que eu PRECISO assistir a essa peça! Vamos?”, comentou uma amiga minha. Chegamos então curiosas e animadas ao Teatro Municipal de Bauru em uma terça-feira chuvosa para assistir a peça de nome peculiar: Cantata para um Bastidor de Utopias.
Antes de falar sobre o espetáculo, vale explicar o que é uma cantata. Uma cantata se assemelha a uma ópera, com menor entonação vocal e maior encenação. É uma narrativa acompanhada de instrumentos musicais e, no caso dessa peça, incrementada com diversas poesias e poderosa linguagem corporal.
Posso agora contar minha experiência.
Ao ver um homem vendado estirado no chão, com manchas desenhadas nas costas, percebemos que a performance havia começado. Ali do lado de fora, ante as portas do teatro – sem aviso prévio. Se aproximam dele duas mulheres e duas crianças, e os quatro passam a bordar um pano com o nome e símbolo da Companhia do Tijolo. Com a chegada de outro homem, que batiza a si mesmo de Luiz Eurico Tejera Lisbôa e poeta da revolução, nós espectadores podemos entender um pouco mais do que acontecia ali.
O homem estirado no chão se chama Federico Garcia Lorca. Poeta, dramaturgo, pintor, pianista e compositor. Tinha 38 anos quando foi fuzilado durante a Guerra Civil espanhola, por antirrepublicanos. Seu assassinato foi um crime político. A família de Lorca durante muito tempo procurou evitar relacionar seu assassinato com sua sexualidade: um homossexual não poderia ser um mártir republicano.
Segundo a biografia de Lorca escrita por Ian Gibson, José Luis Trescastro Medina se vangloriou pelas ruas de Granada por ter “introduzido duas balas no ânus de Lorca pela sua homossexualidade”. O corpo de Federico nunca foi encontrado.
Documentário "Lorca, El Mar Deja de Moverse"; de Emilio Luiz Barrachina.
Estamos reunidos a princípio por conta de uma das obras de Lorca: a peça Mariana Pineda, baseada na lenda espanhola de mesmo nome. Pineda morreu em 1831 “por não delatar” seus companheiros na causa liberal, denunciada por bordar uma bandeira com os dizeres “Lei, Liberdade, Igualdade”. O corpo de Mariana também nunca foi encontrado.
Os atores então cantam juntos, estrondorosamente. Um uníssono poderoso que eu nunca havia visto em uma peça. Precisão melódica. A letra fluía de suas bocas numa expressão tamanha que fez meu coração bater desesperado.
Então todos os espectadores são guiados não só para além das portas do teatro, mas para o próprio palco escuro. Sentamos alguns no chão, outros em cadeiras. Os atores caracterizam o cenário enquanto entram nos personagens. A iluminação, a princípio inexistente, se faz com lâmpadas que acendem no chão e sobem lentamente até o teto. Móveis são trocados de lugar, os atores andam por todo o palco, por entre os espectadores, dentro e fora dos personagens ao mesmo tempo. Nos oferecem um pequeno cálice de vinho enquanto andam para lá e para cá como formigas em um formigueiro.
Faço uma constatação. Não somos reles espectadores com a função de apenas observar. Fazemos parte da apresentação, o construímos junto aos atores. Fica bem claro: não haveria divisão física entre atores e público, não existiria barreira de tempo entre a época da peça e o hoje. Estamos todos mergulhados no espetáculo. Estamos em Granada, na casa de Mariana Pineda.
O diretor pede atenção e todos se posicionam. A peça em si tem início.
Em nenhum momento o espectador é tomado em monotonia, não se percebe a passagem do tempo. Mais de três horas de duração e quatro atos. Nos intervalos desses atos são representados trechos da história de pessoas assassinadas durante a ditadura militar brasileira:
Iara Iavelberg, 27 anos. Psicóloga, professora, guerrilheira de extrema-esquerda e membro da luta armada contra a ditadura. Assassinada a tiros por agentes do DOI-CODI de Salvador.
Manoel Fiel Filho, 49 anos. Operário metalúrgico. Preso ilegalmente, torturado e morto por agentes do DOI-CODI de São Paulo.
Edson Luís Lima Souto, 18 anos. Estudante secundarista. Assassinado com um tiro à queima-roupa pela Polícia Militar durante um protesto pela alta no preço da comida em um restaurante do Rio de Janeiro.
Luiz Eurico Tejera Lisbôa, 24 anos. Escrituário, poeta, militante do partido comunista e membro da luta armada VAR-Palmares. Seu corpo foi encontrado 8 anos depois de seu assassinato, em um cemitério clandestino de São Paulo.
Não há dúvidas de que estão eles ali, na minha frente: Iara, Manoel, Edson e Luiz. Não existem palavras descritivas que façam jus à capacidade dos atores em desenvolver essas personagens. A representação é feita com profundo respeito e entendimento da história de suas vidas e circunstâncias de suas mortes.
Antes no último ato, uma surpresa. Somos levados à uma outra parte do teatro. Sentados em cadeiras em volta de uma grande mesa coberta por um pano vermelho e diversos livros, dividindo taças de vinho e pedaços de pão, somos apresentados a pessoas especiais: Arthur Monteiro Junior, jornalista formado pela Unesp de Bauru e Roque Ferreira, vereador e membro do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas Ferroviárias de Bauru. Ambos estão presentes ali como pessoas que vivenciaram a ditadura no Brasil e, principalmente, em Bauru.
Depoimentos de Arthur Monteiro e Roque Ferreira.
Ao voltarmos para o palco principal, meus olhos estavam cheios de lágrimas. Nos colocamos em volta do que parecia um pequeno palco em cima do já existente, apreensivos. Uma única luz vinda do teto trazia a carga emocional e a força na última cena da performance: a morte de Mariana Pineda.
Neste momento, parecia que todos os atores e músicos transmitiam uma potente energia e voracidade através da desenvoltura dos seus corpos, a interpretação de seu texto e o som dos seus instrumentos. O cenário, a ambientação, a carga histórica de toda a apresentação parecia estar concentrada ali.
Após a morte, alguns segundos de escuridão. Aplausos intermináveis. Me sinto dormente. A música do início da peça volta a ser tocada e somos guiados até o lado de fora do teatro, onde os atores nos aguardam junto aos nomes e fotos daqueles que acabaram de interpretar.
Cantata para um Bastidor de Utopias é um espetáculo de qualidade excepcional, principalmente em relação à performance dos atores. A forma como se portam, gesticulam e incorporam as personagens cumpre facilmente o objetivo de transmitir emoções com veracidade para o público.
Para quem não pôde comparecer em uma das sessões da peça, más notícias. A apresentação que acompanhei fora a última da temporada. No entanto, a Cia. Do Tijolo, em colaboração com o Teatro da USP de São Paulo, lançou o segundo volume de Cadernos a Parte, contendo o material do espetáculo. O volume é composto de um livro da peça e um cd com suas músicas. Além disso, o áudio da peça pode ser encontrado gratuitamente no YouTube.
“Pedro, eu desejo morrer pelo que tu não morres.Eu desejo morrer pelo puro ideal de liberdade que iluminou os teus olhos.” – Mariana Pineda