Raquel Dutra
É impossível ler o título desse filme sem cantá-lo no ritmo de Alegria, Alegria. Quem traduziu o nome da produção chinesa para o português brasileiro com certeza se ligou na semelhança enorme que o enredo de Caminhando Contra o Vento (Ye Ma Fen Zong, no original) tem com o sucesso da MPB. O filme, que integra a Competição Novos Diretores da 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, se fundamenta num protagonista perdido na vida, divertidamente irresponsável que só quer aproveitar sua juventude e liberdade, assim como o eu-lírico da canção.
Ele é Zuo Kun (Zhou You), estudante de cinema em seu último ano que leva uma vida meio desgovernada ao lado de seu melhor amigo, o igualmente cômico e inconsequente Tong (Tong Lin Kai). Recém habilitado (mesmo explodindo seu temperamento inconstante em cima do instrutor do exame de direção), Kun arranja um jipe velho para agilizar a realização de suas aventuras.
No banco de trás do carro ou de frente com o para-brisa, Caminhando Contra o Vento nos faz acompanhar a dupla de amigos por Pequim e pela Mongólia Interior, fazendo um apanhado das artes que eles aprontam enquanto tentam concluir a graduação, resolverem questões pessoais e encontrarem seus caminhos. No meio tempo, o filme reflete sobre a juventude do século XXI e as incertezas universitárias e abraça uma geração de graduandos que enfrentam (ou enfrentarão) um mercado de trabalho difícil e desilusões profissionais.
Ao decorrer da história, o jipe oscila entre constituir o cenário principal do filme ou pessoalizar a 3º personagem principal, desempenhando um papel fundamental no amadurecimento dos jovens e no filme como um todo. É nesse ambiente que Caminhando Contra o Vento cumpre sua principal promessa de ser um “road movie contemplativo” de um jeito diferente do ‘normal’, sem desenrolar uma narrativa profunda e reflexiva de autodescobrimento (como pode parecer ao ler a sinopse) e sem viagens com paisagens de tirar o fôlego (como podemos esperar de um filme do gênero). O panorama aqui é mais amplo e subjetivo, iniciando muitas questões sem encerrar ou aprofundar nenhuma delas, de uma forma bem condizente a alma do filme. Isto é, sem levar nada a sério.
Mesmo assim, Caminhando Contra o Vento possui um retro gosto tragicômico, pois à medida em que rimos das trapalhadas de Kun e Tong também nos preocupamos com o que vai ser do futuro dos dois. Do meio pro final o riso é de nervoso, que também vem pela condução do filme. Seus soberbos de 130 minutos tornam-se exaustivos quando combinados com o roteiro crescentemente veloz, que quase não dá tempo pro espectador se situar das mudanças de rumo dos personagens e da narrativa. Curiosamente, essa mistura constrói uma sensação de filme parado que aos poucos dissolve parte do interesse de quem está assistindo (e erros como este talvez não seriam cometidos se o diretor tivesse prestado mais atenção nas aulas da faculdade, risos).
Se Kun e Tong pintam a juventude sem rumo e sem limites, Zhi, a namorada do protagonista, é repleta de responsabilidades, mesmo que também frustrada profissionalmente. Formada em literatura chinesa, a jovem divide seu tempo trabalhando com animação de eventos num shopping da cidade e como recepcionista em um hotel chiquérrimo, onde Kun com sua falta de noção também apronta poucas e boas.
O relacionamento desigual dos dois dá gás aos conflitos do filme, especialmente quando Zhi é prejudicada pelos vacilos do namorado. A firmeza da personagem de Zhen Yingchen é perfeitamente utilizada, pressionando o amadurecimento de Kun sem aplicar todas as energias dela nessa situação e sem transformá-la num reformatório para o namorado. Logo Zhi compreensivelmente cansa e toca a vida, mas sua passagem breve é o suficiente para representar uma multidão de jovens que encaram exatamente os mesmos problemas que ela.
O contraste da trama estruturada de forma solta que nos amarra à sua diversão e aleatoriedade (salvo as citadas exceções) também aparece quando estamos no set da produção “séria” e elaborada que a turma de Zun e Tong está gravando para a faculdade, onde a dupla cuida da captação de som. O diretor e roteirista Wei Shujun utiliza os contextos dessas filmagens para brincar, sutilmente zombando da classe artística mais tradicional com o personagem que dirige o filme universitário, obcecado por referenciar seus ídolos do cinema e bajular seus atores. A irreverência da mente por trás de Caminhando Contra o Vento também prega peças no público, quando mostra alguma cena direto na tela que na verdade é o que está sendo gravado pelos alunos da faculdade de cinema e não o filme em si.
Parte da atraente espontaneidade do longa se deve à sua base na história do próprio Wei Shujun, naturalmente criada por alguém que já esteve ali no lugar do protagonista, vivendo parte daquelas histórias. Depois das idas e vindas da faculdade o cineasta recebeu menção especial do júri do Festival de Cannes em 2018 pelo curta On The Border. Caminhando Contra o Vento é seu longa de estreia, que já chegou marcando presença na seleção oficial do festival francês e encarando certeiramente aspectos universais da nossa juventude.
Vez ou outra a irresponsabilidade que seus personagens demonstram pode ser exagerada, irritante e estereotipada para criar a atmosfera engraçada do filme. Mas quando as risadas e a adrenalina das experiências ousadas cessam o que fica é aquela pontinha de preocupação com o nosso futuro aqui do outro lado da tela, mesmo nos mais comportados que não se identificam de primeira com os jovens desajustados e se enxergam mais na namorada do protagonista. Esse olhar contemporâneo preciso do jovem é ousado, refrescante e promissor, exatamente como o cinema jovem deve ser. O filme que fica na cabeça até dias depois de seu fim e deixa-nos curiosos pelos seus próximos trabalhos. Wei Shujun é um nome para se guardar.