Carlos Botelho
“50 anos depois e as pessoas finalmente o entenderam. Isso me deixa muito feliz”. Assim agradece Joni Mitchell, atualmente uma simpática senhorinha de tranças, em um vídeo publicado em sua conta oficial do Twitter, sobre o aniversário de meio século de seu disco Blue. É de se estranhar, em um primeiro momento, que a dona de um dos álbuns mais influentes da história dê essa declaração, porém faz mais sentido se pensarmos que artistas femininas como FKA twigs, Taylor Swift e Olivia Rodrigo têm recepções controversas até hoje por suas canções em tom confessional.
Blue começou a ganhar forma em um momento delicado da carreira da cantora. Joni viajou para a ilha de Creta, na Grécia, onde passou um período escondida de seus demônios pessoais e fantasmas do passado em uma caverna. Este momento ficou eternizado na canção All I Want, na qual o verso “Eu estou em uma estrada solitária e eu viajo, viajo, viajo” demonstra a angústia que motivou seu período de exílio. Parece simbólico e clichê, mas morando em uma caverna, Mitchell morou em sua própria filosofia.
Diferente de seus três primeiros álbuns, Joni se permitiu ser roteirista e também atriz principal de sua obra. Suas angústias ganharam o papel de atrizes coadjuvantes, que revelaram detalhes da vida pessoal da cantora que escandalizaram a ainda-mais-misógina-que-hoje indústria musical da época. Em Little Green, Mitchell lamenta a saudade da filha, que não pudera criar antes de se tornar uma cantora de sucesso. Já em River, ela reconhece os defeitos que a tornam uma pessoa difícil de amar. No decorrer de apenas dez faixas, a cantora consegue elencar abertamente todas as dores que a formaram, enquanto mulher e artista.
Um exemplo deste diálogo aberto com as feridas da alma é a faixa-título do disco. A cor azul é associada na língua inglesa com tristeza e melancolia e Joni canta sobre como tais sentimentos são inevitáveis. A canção ainda reflete o aspecto desolador dos comportamentos geracionais do início da década de 70, fortemente influenciados pela cultura hippie e o escapismo do consumo de drogas e o questionamento de valores cristãos tradicionais da época. Blue é uma canção atemporal e que através de uma bela melodia de piano encara de peito aberto a vida com a depressão.
A música mais conhecida do álbum é certamente A Case Of You. Nela Mitchell relata um amor tão intrínseco a sua existência, que mesmo questionando sua toxicidade ela não encontra meios de se desvencilhar. A canção usa o vinho em seus aspectos sacros e adictivos como figura de linguagem para esse sentimento arrebatador por outra pessoa. Joni afirma que o ato de amar é o toque de uma alma na outra e que ela jamais irá se inebriar com esse sentimento. A música se tornou um clássico absoluto e ganhou diversos covers ao longo de seus 50 anos de existência, dentre eles os de artistas como Prince, Tori Amos e James Blake.
Tanta complexidade temática foi embalada pelos acordes suspensos do habitual violão de Joni, juntamente a poderosas melodias de piano. Seus vocais nunca estiveram tão cristalinos e acrobáticos. Joni conseguiu traduzir musicalmente sua jornada da alma de forma acessível, e a beleza dessa simplicidade aparente é a chave do sucesso para esse álbum, que reverbera até hoje de maneira tão atual. Assim como seu nome indica, Blue é elementar e formador.
Todavia, a coragem da artista de fazer de sua arte um diário aberto de sua vida não foi bem recebida pela mídia especializada do início da década de 70. O The Guardian, por exemplo, classificou o disco como menos inventivo que os anteriores, devido ao tom confessional, e questionou sua representatividade para outras mulheres. Enquanto isso, a mesma Rolling Stone que considera Blue o terceiro melhor álbum de todos os tempos, fez um editorial em 1971 desvalorizando a arte de Joni e a rebaixando como musa e namorada de outros artistas.
O tempo sobrepôs qualquer crítica carregada de misoginia da época e, cinquenta anos depois, o registro continua mais vivo que nunca. Blue está presente na vulnerabilidade de Norman Fucking Rockwell! de Lana Del Rey; nas confissões destemidas do Melodrama da Lorde; nas composições catárticas do Red de Taylor Swift, dentre tantas outras artistas que abertamente se inspiram nele. Joni pode não ter achado as respostas para as suas angústias naquela caverna da Grécia, mas o legado que deixou para artistas femininas, e para a música em geral, ainda elucida muitas outras questões.