Nathan Nunes
Nos vinte anos que separam os dias atuais da estreia de A Última Noite (25th Hour) nos cinemas brasileiros, em 23 de Maio de 2003, talvez nenhuma cena tenha marcado tanto quanto o monólogo que Edward Norton (Glass Onion) recita em frente ao espelho de um banheiro, no qual reflete sobre como odeia tudo e todos em sua cidade. Esse momento não estava presente no roteiro inicial de David Benioff, mas sim em seu livro homônimo, objeto da adaptação. O diretor Spike Lee (Infiltrado na Klan) encorajou o futuro showrunner de Game of Thrones a colocá-lo de volta nos planos, além de tê-lo filmado a contragosto da Disney, que o queria fora do corte final.
Em retrospecto, Lee estava pensando à frente, pois o “f*** monologue” (batizado assim por Benioff) representa perfeitamente o estado de espírito dos dois protagonistas do filme. O primeiro é o homem que Norton interpreta, Monty, um ex-traficante de drogas que se encontra há 24 horas de distância dos sete anos futuros de sentença na prisão. O segundo é a sua própria cidade, Nova York, que, na época, estava se recuperando do trauma do 11 de Setembro, dentro e fora das telas.
Em sua estreia, o pôster principal do longa indagava: “Você pode mudar sua vida inteira em um dia?”. A pergunta vai além da sua própria natureza estratégica de marketing, unindo-se ao título original e traduzido em uma síntese das ideias a serem discutidas aqui. Assim como Nova York foi completamente transformada em 11 de Setembro de 2001, Monty também pode – na verdade, deve – escolher no que se transformar no único dia que lhe resta, enquanto a vigésima quinta hora não chega para dar fim a sua última noite de liberdade.
Lee e Benioff entendem perfeitamente os sentimentos que precisam transmitir aqui. O diretor, por exemplo, conduz a câmera sob a mesma perspectiva lúgubre de Monty, trocando sua agitação tradicional por uma decupagem mais contemplativa. Para atingir seus objetivos, ele é auxiliado pelos seus habituais colaboradores: Terence Blanchard (Destacamento Blood), na trilha sonora fúnebre e melancólica, que lhe rendeu sua primeira e única indicação ao Globo de Ouro em 2003; e Barry Alexander Brown (Malcolm X) na Montagem, responsável por equilibrar o passado e o presente da trama com harmonia. Nesse sentido específico, inclusive, chama atenção a Cinematografia de Rodrigo Prieto (O Segredo de Brokeback Mountain), que os diferencia através de um aspecto amarelado, quente e afetuoso para o passado, e outro esbranquiçado, gélido e duro para o presente.
Benioff, por sua vez, entende o texto como um meio de realçar o drama de Monty, através do desenvolvimento das pessoas ao seu redor que mais lhe farão falta. Os coadjuvantes principais de sua vida incluem os amigos Frank (Barry Pepper, de Bravura Indômita) e Jacob (o saudoso Philip Seymour Hoffman, de O Mestre), o pai James (Brian Cox, de Succession) e, principalmente, a namorada Naturelle (Rosario Dawson, de The Mandalorian).
É interessante notar como cada um desses indivíduos possui seus próprios dilemas, que os aprofundam e os distanciam de uma visão unidimensional e maniqueísta. James, por exemplo, vê o alcoolismo de seu passado refletido nas barreiras para se relacionar com o filho. Já Naturelle oferece apoio evidente para o companheiro, mas tem sua lealdade constantemente questionada pelo próprio filme. Entre os amigos, Frank seria o equivalente da época aos “machos red pill” da atualidade, enquanto Jacob talvez carregue a maior incógnita ética do longa, ao ser posicionado no roteiro como um possível interesse amoroso de sua aluna menor de idade, Mary (Anna Paquin, de O Irlandês).
De certa forma, a escolha de Benioff por essa moralidade maleável nos coadjuvantes reflete o peso das escolhas de Monty, ao passo que nenhum de seus companheiros pagará seus pecados como ele pagou. Lee potencializa as dores do longa, evidenciando o martírio do protagonista em detalhes desde os minutos iniciais, em que o acompanhamos resgatando o cachorro Doyle da morte. Em um diálogo mais adiante, Monty se diz orgulhoso de sua atitude, pois permitiu ao animal uma segunda chance de vida – justamente o que ele lamenta não poder ter para si próprio.
Nesse sentido, é necessário olhar também para o trabalho fabuloso que Edward Norton faz em cena, na pele de um dos personagens mais notáveis de sua carreira. Seja no olhar distante, no corpo curvado e no andar pesado, percebe-se um homem falhando ao tentar projetar o mínimo de resiliência, por não conseguir esconder a tristeza profunda que sente, bem como seus arrependimentos, dúvidas e medos. Trata-se da fragilidade de alguém que teve a vida virada de cabeça para baixo e agora a encontra por um fio, o que explica perfeitamente a importância de Nova York aqui.
É fato que o monólogo proferido pelo ator no banheiro carrega uma veia intensa de raiva e ressentimento, em especial na forma como fala de outras culturas e personalidades da cidade: italianos, irlandeses, judeus, russos, coreanos, japoneses, negros, Wall Street, Harlem, ricos, pobres, golpistas e trabalhadores. Contudo, o que a câmera de Lee – urbana como sempre – nos mostra são as particularidades dessas pessoas, bem como a importância delas para a vida do protagonista. Afinal de contas, uma cidade que engloba uma diversidade tão intensa em sua população pouco iria se importar com os crimes de um de seus cidadãos, da mesma maneira que Monty se importa.
Em seu vídeo-ensaio O Ingrediente Secreto da Trilogia Homem-Aranha, o youtuber americano Patrick H. Willems relaciona essa sequência com um espírito de reconstrução da autoestima nova iorquina pós-11 de Setembro, catapultado tanto por Lee, aqui, como por Sam Raimi (Doutor Estranho no Multiverso da Loucura) no primeiro filme do cabeça de teia. 25th Hour, porém, vai além e faz seu protagonista sofrer a perda da cidade, lamuriar a despedida dos seus conterrâneos e visualizar uma selva de pedra tentando se recompor assim como ele, em uma intersecção de seus sentimentos com o de uma metrópole traumatizada.
No terço final de A Última Noite, Monty parece querer ferir as pessoas que lhe importam involuntariamente, fazendo-os sofrer como ele. Frank é forçado a espancar o amigo por ele próprio, na angústia de chegar na prisão com um ‘rostinho bonito’, pronto para ser espancado pelos seus demais. Já Naturelle é negligenciada ao tentar ajudar o namorado com seus ferimentos, sendo ao menos recompensada pelo filme com uma composição memorável de seu último abraço frente a porta de separação, com Paul Newman os observando à direita, aprisionado no pôster de Rebeldia Indomável (1967), longa em que interpretou justamente um presidiário.
Em seguida, James viaja com o filho rumo à penitenciária, incumbido de decidir se o deixa cumprir sua sentença ou o leva para um novo futuro, longe dos perigos da cidade grande. 25th Hour prefere deixar aberta ao público a interpretação sobre o destino escolhido, mas, independente desse critério, mantém o sentimento de melancolia. A vida de Monty até pode ser mudada, mas a um custo irremediável: com as vidas que fizeram parte da sua própria, seja de amigos, familiares, amores e, até mesmo, conhecidos de pouca intimidade. Em suma, o mesmo preço que Nova York pagou mais de duas décadas atrás.