Giovanna Freisinger
Não se pode dizer que A Alegria é a Prova dos Nove não é uma experiência. Até os últimos minutos, paira a dúvida: é uma sátira, né? Por esses breves momentos, se torna genial, seria uma crítica afiada às cirandas de uma nova esquerda totalmente desorientada. Há momentos de frivolidades tão cômicos que só poderiam ser propositalmente irônicos. Mas, em seu desenrolar, o filme segue confirmando que não. Não é uma sátira, são só os devaneios de uma classe alheia à realidade do presente.
Helena Ignez é uma das mais importantes veteranas para o Cinema brasileiro. A atriz e cineasta é tida como ícone do Cinema marginal, principalmente por sua parceria e atuações nas obras de seu então marido, Rogério Sganzerla, em grandes filmes do final da década de 1960 e começo de 1970, como O Bandido da Luz Vermelha, A Mulher de Todos e Copacabana Mon Amour. Aos 81 anos, dirige e atua em seu mais recente longa, escrito por ela própria, de título em homenagem a Oswald de Andrade, e enredo, no mínimo, caótico.
Há gosto em assistir uma mulher octogenária falar abertamente sobre o prazer feminino, e observar a segurança em si e em suas convicções que ela carrega no peito. Sem medo das palavras, muito pelo contrário, a diretora usa todas as letras e fala de clitóris, vulva, orgasmo e o que for. Ignez interpreta uma sexóloga que dá aulas para mulheres conseguirem obter o seu próprio orgasmo e, com seu grupo de discípulas e amigas, desenvolve projetos feministas e artísticos. Também é válido reconhecer que é sempre positivo testemunhar uma pessoa que claramente ama a sua Arte se aventurar ao fazer Cinema, ignorando as regras, e isso o filme tem. Porém, esse tom descompromissado inevitavelmente age contra a narrativa mal definida, que se perde ao tentar abraçar o mundo.
Não há justificativa para uma história, em 2024, atribuir a uma personagem a posição de guru sexual da libertação feminina… para um grupo homogêneo de mulheres brancas. A terceira onda feminista é caricatamente reduzida a discursos cansados sobre sexualidade livre, sem qualquer atenção para a interseccionalidade, principalmente de raça e classe. O resultado disso é ‘chover no molhado’ com a repetição do que já escutamos milhares de outras vezes, sem agregar uma nova perspectiva.
Em um dado momento, uma personagem trans aparece com uma fala importante sobre sua experiência com a maternidade e a transexualidade. Essa cena dura um minuto e meio, aparece entre duas outras desconexas, e não se toca no assunto novamente. Várias outras questões são tratadas da mesma maneira, um breve comentário sobre racismo alí, uma visita a uma ocupação que abriga refugiados palestinos acolá. De repente, poligamia e cannabis medicinal. Ao ponto que chega a parecer um bingo de causas sociais mal desenvolvidas. Se bingo não for a sua ‘praia’, experimente reunir um grupo de amigos com bebidas, com certeza renderá um bom jogo: um shot a cada nova pauta que passa brevemente pelo roteiro e é jogada ao vento.
A construção do enredo é dada a partir de compilados de situações cotidianas – apesar da maioria dos diálogos não parecer natural ao modo como as pessoas conversam na vida real. Essas histórias são ligadas por cortes repentinos, desconexos entre si, que se tornam cansativos à medida em que você percebe a ausência de propósito do todo. As cenas com Helena Ignez em frente às câmeras são pontos altos do filme, a protagonista é interessante mas, infelizmente, ela divide muito do seu tempo de tela com o turbilhão de outras coisas que acontecem. É impossível criar qualquer conexão com os personagens quando tão pouco é mostrado e feito de maneira tão rasa.
A Alegria é a Prova dos Nove busca criar um paralelo entre o passado e o presente, mediado pela reflexão sobre quais rumos levaram a utopia e as lutas das décadas de 1960 e 1970. A temática principal da obra se encontra nessa ideia. Mesmo depois de tantas mudanças, a juventude atual ainda tem que lutar suas próprias batalhas contra o conservadorismo, a extrema-direita e o autoritarismo. A mensagem seria melhor transmitida se a narrativa não levasse causas contemporâneas sérias ao lugar do ridículo como faz.