“Nosso destino vive dentro de nós. Você só tem que ser valente o suficiente para vê-lo.”
Júlia Caroline Fonte
Qualquer criança nas últimas décadas, com certeza, em algum momento, sonhou em viver em um castelo e encontrar um príncipe encantado, mas hoje sabemos que as coisas não são bem assim. Há 10 anos, a primeira e única princesa dos estúdios Pixar veio para mostrar isso: Merida (Kelly Macdonald), a corajosa protagonista de Valente, protagoniza uma história empoderadora sobre liberdade e amadurecimento, que mergulha em uma aventura mística e afetiva.
Nas terras do Clã Dunbroch nas Highlands da Escócia medieval, em meio a regras e costumes, uma jovem princesa vem se preparando para um dia assumir a função do pai, o rei Fergus (Billy Connolly), ao lado de um bravo cavaleiro que deverá conquistá-la, em um torneio organizado pela rainha Elinor (Emma Thompson), sua mãe. Decidida a mudar o próprio destino, Merida causa uma grande confusão com os clãs do torneio ao competir pela própria mão. Ela então foge para a floresta, e segue uma trilha de fogos-fátuos até a cabana de uma bruxa, que realiza o feitiço que ela desejou; porém, não da forma como esperava, uma vez que sua mãe é transformada em um urso e elas precisam correr contra o tempo para reverter a magia.
Desde o primeiro contato com o público, em 20 de julho de 2012, Merida chamou muita atenção, pois, além de também ser a primeira protagonista mulher de um filme da Pixar, ela marcou uma grande transformação em meio ao universo das princesas Disney. Narrativas estereotipadas, que funcionaram em um passado de contexto social diferente, não cabem mais no cenário contemporâneo, o que obrigou a gigante do entretenimento a mudar o rumo de suas personagens. Essa transição, que já vinha criando raízes com Mulan, A Princesa e o Sapo e Enrolados, tornou-se efetiva com o surgimento de Valente, abrindo espaço para as narrativas de Frozen, Moana – Um Mar de Aventuras e Raya e o Último Dragão.
Graças a isso, agora vemos narrativas de fato focadas em suas protagonistas, cujas tramas não se baseiam em encontrar um homem para se realizar, mas sim em princesas com as quais podemos nos identificar na busca de nossos maiores desejos e ambições. A princesa de Valente (Brave, no original) trouxe essa mensagem com grande força, ao decidir que além do dever, ela pode lutar pelos próprios sonhos e por sua liberdade de escolher como trilhar o próprio caminho. Merida desafiou não só os clãs e sua família ao terminar sua história sem um casamento, mas também o público tão acostumado com o “final feliz ideal”, anunciando que a felicidade de uma princesa deve ser encorajada, mesmo que não haja um príncipe nela.
Merida também rompe com os estereótipos físicos de suas antecessoras. Os estúdios da animação conseguiram inovar ao dar um passo em direção a mudança do corpo padrão das personagens femininas. Merida ainda é uma mulher magra e branca, porém, quando comparada as outras princesas das animações anteriores, seu tipo físico está mais próximo de uma mulher real, como, por exemplo, seus cabelos volumosos e com frizz, e sua cintura mais reta com quadris maiores – que também fazem referência às representações das vestimentas femininas escocesas do período. Agora, esperamos que, a partir disso, a Disney possa continuar essas mudanças a fim de ser cada vez mais inclusiva e representativa para as novas gerações.
O comportamento da princesa escocesa também é algo marcante no filme. Ela surpreende não sendo da forma que todos esperam, com atitudes até mesmo consideradas brutas para uma princesa, sem delicadeza, descontente com suas regras de etiqueta e negando os moldes ideais impostos e esperados de qualquer mulher. Essas características fazem parte tanto de sua personalidade quanto das crianças que a assistem, e podem se identificar. Merida normaliza que garotas podem agir da forma que realmente são, independente da expectativa que colocam sobre o gênero e do papel que terão no mundo. Ser uma princesa não significa abdicar de quem é em prol do que a sociedade quer que você seja.
Apesar de ser impactante por todos esses motivos, Valente também se destaca pela sua história e as temáticas que aborda. A principal delas é a relação entre mãe e filha construída por Merida e Elinor. Ambas possuem personalidades muito diferentes, bem como alguns valores e visões de seus deveres, o que as coloca em conflito em diversos momentos. O filme mostra a construção de uma relação saudável e de equilíbrio entre as personagens, e faz isso de modo perfeito, terminando com as personagens encontrando um ponto de equilíbrio e entendendo uma à outra.
A conclusão do conflito entre elas parte do entendimento de Elinor de que precisa compreender a realidade e vontades da filha e reconhecer seus talentos, bem como lidar com as escolhas dela. Mas é principalmente com o amadurecimento de Merida que as coisas começam a se encaixar, pois ela passa a entender as consequências de seus atos e a importância de seu papel – e de defender sua liberdade de escolha. A partir do contato com suas origens e o passado de sua terra, a protagonista tenta a todo custo consertar os problemas que causou para não sucumbir ao mesmo fim do príncipe Mor’du, e condenar a própria mãe; assim, “remendar a união por orgulho separada” acaba sendo a solução para elas e o grande resumo de todo esse processo.
O roteiro de Valente, assinado por Steve Purcell, Irene Mecchi e pelos também diretores Mark Andrews e Brenda Chapman, traz uma trama com uma encantadora relação entre duas mulheres fortes e com um poderoso laço de amor, algo pouco mostrado nas histórias atribuídas às princesas, mas que se repete em Frozen – Uma Aventura Congelante, produção do mesmo estúdio lançada no ano seguinte. Discutir o amor além do romântico parece ser uma tendência que agradou muito o público e a Academia, e um tema importante a ser retratado nas telas, principalmente para as novas gerações, que cada vez mais tem contato com as novas produções e mensagens que a Disney traz. O longa recebeu o Oscar de Melhor Animação, e consagrou Chapman como a primeira mulher na História a levar a estatueta pela categoria.
Seguindo uma outra tendência dos filmes da Pixar e da Walt Disney Animation Studios, o local em que a história se passa torna-se um elemento muito importante para a construção do enredo, e assim como em todos os filmes do estúdios, a Escócia aparece em Valente de forma impecável. Mais que apenas um lugar onde habita a história, o país foi fundamental para construí-la, sendo a cultura escocesa indispensável para o desenvolvimento da narrativa e para a transformação da personagem. Bem como nos filmes da série Frozen e Moana: os mitos, lendas e processos ritualísticos acabam por sustentar todo o mistério e misticismo, sendo também uma outra forma importante de representatividade para o público diverso, e que deve sempre ser celebrado.
Além disso, a ambientação do local e da época também ocorreram de forma perfeita, sendo marcante neste filme mais do que em qualquer outro da Disney. Trajes tradicionais, costumes, clãs, características físicas, músicas, castelos e paisagens: todos esses aspectos da História do país foram inseridos de forma certeira e conseguem nos transportar para o período com muita facilidade. Também são essenciais para criar o tom da narrativa, que se distancia um pouco daquele criado em outras obras sobre princesas. A atmosfera mística foi trazida de forma precisa, com as cores escuras contrastando com as chamas dos fogos-fátuos e com qualquer outro ponto de luz na tela.
Ao fim, Merida veio ao mundo para abalar qualquer estrutura estereotipada nos cinemas, tornando-se uma importante voz principalmente para as meninas, tanto aquelas que cresceram nas décadas passadas quanto para as que estão adentrando agora neste universo. A personagem segue lembrada por sua coragem, não só de escalar montanhas, cavalgar e soltar flechas, mas também de lutar pelo que quer e ser quem é, independente do que esperam dela, estimulando, assim, grandes mudanças. Valente é um marco para os filmes de princesas, e uma mensagem permanente sobre lutar pelos próprios sonhos.