Aviso: O texto contém alguns spoilers

Davi Marcelgo
Desde que o Cabeça de Teia surgiu, em 1962, na revista Amazing Fantasy #15, muitos autores e desenhistas assumiram o controle das histórias e tentaram, à sua maneira, trazer algum frescor no universo do herói. Porém, ainda que Peter Parker tenha saído do colégio e prometido votos de matrimônio, de alguma forma, ele voltava à estaca zero: um personagem solitário que não podia se relacionar com ninguém sem que uma tragédia acontecesse. Os fãs reclamavam em redes sociais sobre o vai e vem, pedindo por tramas que saíssem da rotina. Em Março de 2024, o pedido foi atendido. Após o retorno da linha Ultimate da Marvel Comics, chegava às bancas dos Estados Unidos a primeira edição de Ultimate Homem-Aranha, escrita por Jonathan Hickman e ilustrada por Marco Checchetto. Trazendo o protagonista mais velho, casado e com filhos, a maior diferença é que, neste universo, o Homem-Aranha não existe – pelo menos até as últimas páginas da primeira edição.
Na trama, O Criador, uma versão malvada de Reed Richards (o Sr. Fantástico), apaga a existência de todos os heróis da história, impedindo que eles ganhem seus poderes. O Capitão América não é descongelado, a Tempestade não está com os X-Men e Parker nunca foi picado pela aranha radioativa; fator que permitiu a construção de uma família e uma vida sem grandes responsabilidades. No entanto, o Rapaz de Ferro (Tony Stark) descobre o plano do vilão, fazendo de tudo para despertar habilidades nas pessoas que vivem vidas não destinadas à elas: é ele quem entrega uma aranha para Peter Parker.
Essa narrativa de destino (que você não escolhe) e, principalmente, de sentir que há algo faltando na vida – uma reclamação constante do protagonista durante os primeiros volumes – soa como uma experiência queer e, talvez, isso seja o máximo de diferente que a nova saga tem em comparação com o universo regular do personagem. É claro, de algum modo, o texto precisa ficar familiar para os leitores, mas se o herói como conhecemos ainda existe em outro gibi, por que este não pode abraçar, de vez, o revolucionário?

O sentimento de ter uma vida roubada faz parte do processo de aceitação de uma pessoa LGBT+, seja a infância perdida ou a adolescência tardia, com a simulação de um ‘falso eu’. No vídeo A Dupla Personalidade na Cultura Pop para seu canal no YouTube, Thiago Ora faz uma alusão da vida secreta dos super-heróis e de homens gays; ambos precisam esconder uma parte de suas existências para sobreviverem. Em um diálogo com seu tio, o protagonista diz que “…não é de hoje que eu penso que tem alguma coisa errada com a minha vida…”, em outro, Harry Osborn faz indagações sobre as consequências de viver essa vida escondida das pessoas que ama. Nesse novo título do aracnídeo, a temática é ainda mais presente, porque a vida de Parker como pai, marido e repórter só dá certo ao nunca ter tido contato com seu duo, começando a ser abalada ao despertar esse lado.
A questão desta suposta renovação do Homem-Aranha é que ele ainda é o mesmo: branco, cis, hétero e com o sonho de ter uma família nuclear. Convenhamos, um Homem-Aranha gay ou bi, abalaria o ‘mundinho’ nerd. Embora, no Brasil, apenas seis edições tenham sido lançadas, já dá para prever – seja lendo a obra ou acompanhando as teorias de outros leitores – que os caminhos a serem seguidos caem no lugar-comum: personagens morrendo, pessoas próximas se revelando como vilãs e a dificuldade em conciliar a vida dupla. Não há uma ruptura entre Peter Parker do universo regular e Ultimate.
Na nova versão, Tio Ben está vivo e Tia May quem morreu, novamente, a Marvel cai em clichês, no entanto, os idealizadores conseguem bons frutos dessa ideia. O melhor destaque do quadrinho é a dupla veterana de jornalistas, formada por Ben Parker e J. Jonah Jameson. Após o Clarim Diário passar por mudanças editoriais, Wilson Fisk, o Rei do Crime, assume a editoria do jornal, então, Jameson e Parker se demitem, criando sua própria empresa. Dois ‘velhos’ confortáveis em suas antigas profissões, lutando contra o sistema e investigando sobre a sujeira em Nova York é a grande novidade do gibi, só o núcleo deles dá ingredientes para uma aventura solo.

Conhecido por enredos megalomaníacos, acompanhados de, literalmente, infográficos e muitos conceitos de ficção científica, Jonathan Hickman está com os pés no chão no primeiro arco, deixando as ideias de pirar a cabeça para a revista Universo Ultimate e os Supremos, enquanto o Aranha fica com as consequências das tramoias do Criador em uma perspectiva dos becos e ruas de Nova York. David Messina, que ilustra o número #4, compõe ótimos quadros que criam tensão. A conversa na mesa desta edição com o design em nove quadros é excelente e ver Peter, mais uma vez, aprendendo a usar os poderes é divertido.
Mesmo sem um grande fator novidade, é interessante a versão assumidamente sádica de Harry Osborn e acompanhar a dinâmica familiar de Peter Parker com sua filha, que descobre a identidade secreta do pai, causa bons risos. Outros momentos são bem sensíveis e parte da natureza urbana do aracnídeo, como o batismo do herói feito por Mary Jane ou a escolha de cores do uniforme pela filha. O início de Ultimate Homem-Aranha não é dispensável e muito menos o grande divisor de águas do herói, mas sobe em uma teia qualquer.