Jamily Rigonatto
Quando o estalo da ruptura chega, é impossível deixar de ouvir. O som estrondoso carrega um posicionamento, mas nem sempre se insere de forma natural. Na maioria dos casos, o ruído depende de mais artimanhas do que somos capazes de imaginar. Em Tomando Veneza, documentário dirigido por Amei Wallach e pertencente à seção Perspectiva Internacional da 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, os mistérios por trás do som são mais que desvendados.
Contando a história de como, em 1964, o artista norte-americano Robert Rauschenberg ganhou o prêmio principal da Bienal de Veneza – um dos maiores festivais de arte do mundo –, o longa-metragem explora os laços que interligam a Arte, a política e a tradição. Em seus 98 minutos, a produção destrincha cada passo por trás do caminho traçado pelos personagens envolvidos nessa história e suas motivações.
Toda movimentação acontece no auge da Guerra Fria e, até hoje, dizem as más línguas – a depender do ponto de vista – que todo o empenho em levar o artista aos holofotes da premiação teria sido um jeito dos Estados Unidos difundirem o capitalismo através da Arte. Nas obras repletas de cultura pop e grandes montagens com coisas que facilmente poderiam ser consideradas ‘lixo’, Rauschenberg pensava estar muito longe de posicionamentos, mas gritava algo a cada pincelada ou colagem.
É com a ajuda do curador Alan Solomon que o artista pouco consolidado chega pronto para, como diz o título, tomar Veneza. Junto da socialmente prestigiada Alice Denney e do negociante bom de lábia Leo Castelli, Solomon cria uma estratégia ousada e leva artistas fora do eixo tradicional para a cidade italiana. Exibindo obras no pavilhão do país no festival e também na embaixada estadunidense, os personagens tornam as exibições pontos de impacto social.
Mesmo conquistando o público e a crítica com os novos ares da inovação, as cartadas escolhidas pela equipe fogem das regras da Bienal de Veneza e é nesse momento que a história real ganha ares de um roteiro de suspense criminal. Fazendo de tudo para tornar Rauncherberg o nome da vez, as montagens recebem ajuda de uma grande força tarefa para irem para o pavilhão e se tornarem válidas para a competição.
Apesar do contexto conflitante do momento político, Tomando Veneza se apoia nas contradições sem estabelecer escolhas de lado verdadeiramente marcadas. Ao mesmo tempo em que assume os atos fora da moralidade que levaram os EUA a vencer, um grito sobre Arte, resistência e o rompimento com os ideais conservadores desse meio se esgueira pela tela.
É nesse contato com o novo que o político ganha polifonia e, agora, nem tudo parece tão vil quanto nos primórdios da produção. Em algum momento, uma narrativa não ficcional te faz desejar piamente que o artista segregado das linhas do classicismo artístico vença a Bienal de Veneza. O ganhar vira fato, com o mesmo concretismo presente na maior parte dos desejos dos Estados Unidos, e duas portas se abrem: a difusão do modernismo artístico e o tônus capital da globalização entre arte e política.
Tomando Veneza surpreende e o caos intimista de uma artimanha tão bem feita prende o telespectador a cada frame, só nos resta ansiar por saber quais os próximos passos. O sentimento é paradoxal e o ódio ao americanismo se mistura com a torcida pelo rompimento das amarras que seguram o conservadorismo das construções culturais. Naquele momento, Veneza se comporta sincronamente como um alvo do colonialismo estadunidense e um palco da independência de uma Arte que não vive só da estética, mas de mensagens críticas e espirituosas na busca um futuro socialmente distinto.
Para Rauschenberg, a sensação é a mesma, e a obra faz questão de mostrar o desconforto que o acompanha quando percebe que, na verdade, sua presença foi apenas uma parte objetificada do discurso nacionalista de seu país. Um uso sociopolítico que sequer representava seus pensamentos e expressões sobre o sonho americano, mas que, ainda assim, difundiu seu jeito de experimentar o mundo.
Para os fãs de uma boa investigação, a produção é um deleite. Caso esse não seja o caso da maioria, ainda é uma grande oportunidade para entender como as coisas funcionam de maneira mais complexa do que aparentam. Seja de um lado, do outro, ou no meio, nenhum dos pontos dessa linha têm o menor talento para a falta de posicionamento. Na minutagem de um documentário, os rompimentos deixam pontas esfarrapadas nos dois lados de uma corda.