Raquel Freire
Quando o assunto é a indústria musical, não é incomum ouvir que artistas, principalmente mulheres, precisam se reinventar múltiplas vezes para continuarem na cena. É o que aconteceu com Halsey na última década: ela fez sua estreia como uma adolescente rebelde em BADLANDS (2015), defendeu a postura de uma ‘artista conceituada’ transformando o clássico shakespeariano Romeu e Julieta em hopeless fountain kingdom (2017), mostrou-se como uma autora de sucesso mundial em Manic (2020) e uma máquina de ódio industrial que explodiu em If I Can’t Have Love, I Want Power (2021). Seu quinto álbum de estúdio, The Great Impersonator, segue a mesma linha. No entanto, ao invés de assumir uma única personalidade, Halsey assume 18.
Há um grande motivo por trás deste conceito. Ashley Nicolette Frangipane criou sua persona artística antes de entrar na vida adulta e, desde então, a assume. Com o passar do tempo, os traços que definiam cada nome tornaram-se cada vez mais parecidos, até chegar ao ponto em que a própria artista não conseguia discernir quem era quem. Dessa forma, acreditando que este seria seu último álbum, Frangipane decidiu incorporar outras personalidades para além de Halsey, explorando como sua Arte seria se ela estivesse no cenário da Música nas décadas de 1970, 1980, 1990 e 2000. Cada faixa saúda, de alguma maneira, uma das inspirações da artista, que as ‘personificou’ ao recriar looks icônicos de seus ídolos.
Em algumas músicas, as influências declaradas são bem aparentes; em outras, é difícil fazer a conexão. Ao ver Halsey posar como Dolly Parton na divulgação de Hometown, não é difícil adivinhar que essa será a produção com um sabor country no álbum, embora a descrição de como um colega de escola, que faleceu cedo demais, está congelado no tempo não pareça com algo que Parton faria. Por outro lado, Panic Attack, inspirada em Stevie Nicks e um dos pontos altos do disco, é totalmente parecida com Dreams em sua execução nitidamente analógica da década de 1970, misturando vocais cintilantes e guitarras com reverberação pesada que exploram a essência vintage de Nicks.
Apesar desse ponto, essa escolha totalmente diferente de criar e incentivar as pessoas a pensar sobre a obra comprova a qualidade do principal material apresentado: a mensagem que a cantora quer transmitir. Da primeira à última música, fica claro que o sentimento que guia o disco é a mais pura ansiedade e, em nenhum momento, o ouvinte deixa de prestar atenção nas grandes questões com as quais Halsey está lutando. Ao invés de formar uma grande bagunça que mais distrai do que atrai, a mistura de gêneros e tons resulta em uma experiência auditiva dinâmica e imprevisível, assim como os temas de vida, morte, amor, raiva e legado são apresentados ao longo dos 66 minutos de duração.
The Great Impersonator não foi concebido para ser uma experiência fácil de ser ouvida, ao passo que carrega algumas das músicas mais profundas e reveladoras da carreira de Halsey. Entre o lançamento de seus dois últimos álbuns, a cantora terminou um relacionamento (de uma forma não muito amigável, pelo que parece) logo após o nascimento de seu primeiro filho e foi diagnosticada com leucemia e lúpus. Essas experiências são, sem dúvidas, capazes de mudar a perspectiva de qualquer pessoa, e Frangipane incorpora esses sentimentos no álbum extraordinariamente.
Life of the Spider (Draft) é o maior exemplo. Composta apenas pelos vocais de Halsey e as notas de um piano, a música, inspirada em Tori Amos, soa como uma voicenote – um desabafo tão vulnerável que passa a sensação de que a cantora não a regravou para não precisar repeti-lo. Aqui, Halsey fala sobre como a dinâmica de seu relacionamento mudou quando ela começou a sentir os efeitos colaterais de seu tratamento. A faixa se baseia em uma metáfora muito específica: ela se caracteriza como uma aranha que, apesar de inofensiva, está prestes a ser exterminada por um homem que se sente irritado por ter que dividir seu espaço com um ser que, normalmente, gera repúdio nos outros.
Outra composição que deixa o ouvinte com vontade de fazer uma pausa para digerir o que foi dito é The End, o primeiro single do disco. Ao mesmo tempo em que é a música que aborda mais extensa e abertamente o quadro de saúde de Halsey, é a que mais se aproxima de uma música alegre na coletânea. Isso acontece porque é a única vez em que ela se dirige a um parceiro que a apoia e, aparentemente, a ama. Com uma voz calma e um simples dedilhado à la Joni Mitchell, ela canta que, ainda que parecesse o fim do mundo, ela não estava sozinha, e isso fez com que toda a situação não fosse tão difícil de lidar. O questionamento final, “Você pode me pegar às oito?/Porque meu tratamento começa hoje”, é o momento mais doce de um álbum que não possui muitos deles.
Embora pareça, em um primeiro momento, que este será um álbum apenas sobre a saúde da cantora, logo surgem músicas que abordam áreas mais universais da angústia. Uma delas é Darwinism, inspirada em David Bowie, que faz um trabalho brilhante em combinar solidão com pânico existencial. Nessa faixa, Halsey expõe o sentimento de não conseguir fazer parte de um todo, como se todas as pessoas estivessem construindo o que precisam e seguindo seus planos, enquanto ela se vê incapaz de seguir adiante. Em termos de darwinismo, ela se refere a si mesma como uma espécie primária – todos os outros evoluíram, mas ela, talvez, nunca o fará.
Lonely is the Muse e Arsonist também fazem parte deste grupo. A primeira, que ecoa a atmosfera alternativa mais sombria de Amy Lee, contém partes de um poema escrito por Halsey, no qual ela assume o papel de uma mulher cujo único propósito é inspirar um amante, sendo descartada assim que não for mais necessária. A segunda, que remete ao groove de Fiona Apple, apresenta uma melodia muito mais suave do que suas palavras atormentadas. Abertamente feita para seu ex-namorado – cujo primeiro nome, Alev, significa ‘chama’ em turco –, a música discorre sobre a toxicidade do relacionamento de ambos, no qual Halsey o define como o fogo e, ela, como a água.
Arsonist foi o resultado da colaboração da cantora com Michael Uzowuru, que participou da produção da maioria das faixas, assim como Alex G. Essa é a primeira vez que eles trabalham em parceria desde Blonde (2016), de Frank Ocean. É fato que, aqui, seria difícil superar o trabalho que Trent Reznor e Atticus Ross, da banda Nine Inch Nails, entregaram em If I Can’t Have Love, I Want Power. Entretanto, esses músicos – e alguns outros que se juntaram a eles, como Austin Corona e Caleb Laven – conseguiram criar um álbum que mantém um pouco do assombro do disco anterior, ao mesmo tempo em que se expande para uma paleta mais ampla.
Mesmo com um conceito inédito e uma imensa qualidade na produção e na composição das músicas, escutá-las uma por uma, na ordem estabelecida, não é algo que vai agradar a todos – principalmente aqueles que não se familiarizaram com o significado por trás delas. Contudo, quem se arrisca a chegar ao final conclui que esse não foi um álbum criado para os charts e a grande massa, mas sim para a Arte e a própria Halsey. Feito em um momento de sua vida em que tudo estava incerto, o disco é um registro de que ela sobreviveu. É, também, um registro impecável de como a exploração da liberdade criativa e o desejo de não ser ‘mais do mesmo’ podem resultar em verdadeiras obras de arte.
The Great Impersonator não foge da escuridão, mas celebra a luz dentro das inspirações mais profundas de Halsey. Mais do que uma coleção de ‘imitações’, o álbum se mostra como uma declaração ousada de identidade artística; um testemunho da cantora multifacetada que ela se tornou. Ao homenagear as pessoas da indústria que a definiram, Ashley Nicolette Frangipane molda um novo capítulo em sua história – um que captura a beleza, o caos e a vulnerabilidade de sua vida e de sua Arte, ao mesmo tempo em que eleva as vozes daqueles que vieram antes dela.