Gustavo Capellari
Em 2020, a cantora Jessie Ware, já consolidada na época no mercado fonográfico britânico com três álbuns lançados, entrava em uma empreitada importante para sua carreira: o lançamento do seu quarto disco, intitulado What’s Your Pleasure?, que trouxe uma sonoridade diferente da que a artista vinha explorando anteriormente. Naquele ano, Ware explorava a pergunta “qual é o seu prazer?”. Já em 2023, That! Feels! Good! é lançado e faz uma afirmação na qual o prazer é celebrado. Esse pequeno detalhe, embora pareça pouco importante, nos ajuda a entender as transformações nos estilos explorados pela cantora.
O que os dois álbuns mais têm em comum talvez seja a presença da Música disco, juntamente com as letras e melodias cativantes que compõem a trajetória da diva. Investindo em ritmos dançantes e com um apelo comercial maior do que seus primogênitos – Devotion (2012) e Tough Love (2014) –, ela passa a ganhar cada vez mais espaço nos charts e admiração da crítica.
A Música tem a capacidade de nos transportar para lugares de conforto, sejam eles utópicos ou não. Jessie Ware se coloca na posição de alguém que precisava de um escape da realidade e a criação de seus dois últimos álbuns a prestou esse papel, especialmente considerando que o mais recente foi gravado e produzido inteiramente durante a pandemia da covid-19.
Isso também não quer dizer que ela já não tivesse conquistado posições de destaque anteriormente. A artista foi nomeada múltiplas vezes em diversas premiações, dentre elas o Brit Awards, o MOBO Awards (voltado para a Música originária das comunidades negras) e o Mercury Prize, tendo sido indicada para Álbum do Ano pelo seu debut em 2012 e pelo seu lançamento de 2023.
Talvez um dos diferenciais mais marcantes de Ware seja a sua capacidade de performar e compor música pop de forma eclética e elegante, trazendo múltiplas influências e utilizando-as de uma maneira que faça sentido para um projeto específico. Enquanto seus primeiros três álbuns têm uma sonoridade mais voltada para o R&B e o soul, What’s Your Pleasure? e That! Feels! Good! abraçam o estilo disco.
Embora mais voltado para os clubes de dança (antigamente chamados de discotecas), o disco tem uma origem comum aos gêneros anteriores: as comunidades afro-americanas. O desenvolvimento dessa subcultura na década de 1970 provocou diversas transformações na sociedade e na cultura, e foi essencial para a construção das bases da Música eletrônica como a conhecemos hoje, inclusive o nu-disco.
Para além da Música em si, as comunidades que frequentavam as discotecas nos Estados Unidos também incluíam, além da comunidade negra, pessoas de outros grupos subalternos da sociedade norte-americana, como latinos e LGBTs. Jessie Ware e James Ford, seu produtor de longa data, evidentemente conhecem e prestam homenagem à influência histórica do disco.
Ware também explora outros gêneros, como o diva house, o soul e o funk estadunidense. A produção afiada de Ford e de Stuart Price serve como uma luva para os vocais e arranjos das faixas, que marcam a transição de um disco um pouco mais melancólico do lançamento predecessor para uma atmosfera mais enérgica e animadora. Talvez, Remember Where You Are, que finaliza o What’s Your Pleasure, delimite o início dessa transição, pois, na época, a artista ficou em dúvida se a música deveria estar mesmo no álbum por ser mais exultante do que a maioria das outras.
A música negra é uma das grandes fontes de influências artísticas de Jessie Ware, que cita sua admiração a figuras como Donna Summer, Minnie Riperton e Evelyn “Champagne” King. Ela também já colaborou com outras mulheres que constroem o que poderíamos chamar de pop sofisticado contemporâneo, notadamente Kylie Minogue e Róisín Murphy. Porém, diferentemente de Ware, elas já construíam suas carreiras musicais há mais tempo, em especial Minogue, que começou em 1988. Ambas emprestam seus vocais na faixa-título, que dá início ao álbum.
Nessa faixa, um lema é repetido algumas vezes: “o prazer é um direito”. Trata-se de uma mensagem que se encaixa perfeitamente no conceito hedonista do disco, que celebra o prazer de viver, estar e ser quem se é. O amor e a sexualidade também aparecem como temas recorrentes. Além disso, ao tratar o prazer como direito de todos, Jessie Ware reitera sua consciência social perante as diversidades e opressões perpetradas contra mulheres, negros, imigrantes e pessoas queer.
A segunda canção, Free Yourself, fala sobre liberdade, empoderamento e volúpia. Ela sente que os seus dois últimos discos, mais do que reinvenções drásticas de sua Arte, seriam em grande parte retornos a questões passadas, e também caminhos para ela se libertar de pressões aprisionadoras masculinas e firmar sua independência artística.
That! Feels! Good! não se limita apenas a composições energéticas ou bombásticas. As faixas Hello Love, Begin Again e Lightning são mais plácidas do que o restante, o que promove um equilíbrio interessante que não torna o conjunto da obra cansativo e nem entediante demais. Seja para quem quer uma Música mais animada, ou para quem prefere uma sonoridade mais calma e atmosférica, há o que se aproveitar em um dos álbuns mais aclamados de 2023.
A ecleticidade, aqui, não é um problema, pois não há uma salada de estilos que não conversam entre si. É, pelo contrário, um projeto com uma segmentação coerente e que já apresenta, logo de início, o tipo de conteúdo que será passado ao ouvinte. A própria identidade visual do projeto também exala opulência e autodeterminação, combinadas a uma estética vibrante e, por vezes, kitsch, característica das décadas de 1970 e 1980.
Embora Ware enxergue seus últimos esforços artísticos mais como retornos a influências anteriores do que uma ‘reinvenção da roda’, é inegável que o seu trabalho apresenta originalidade, carisma e expressão própria que não soa como uma mera repetição de fórmulas prontas do pop. Em meio às suas próprias extravagâncias, That! Feels! Good! soa bem, como o título revela, também pela sua produção sóbria e letras que, embora sem uma grande complexidade, cumprem excelentemente seus objetivos.
“Pensem nesse disco e em What’s Your Pleasure? como o Bert e Ernie do revivalismo moderno do Studio 54, ou um par de hits de dopamina queer-codificados que realmente não podem ser imaginados existindo separadamente.” – Jessie Ware em entrevista para o jornal Independent
Afinal, seja para ouvir em uma festa, em uma reunião de amigos ou sozinho em casa com um bom par de fones de ouvido, Jessie Ware é capaz de encantar uma gama variada de públicos. Ela pode externalizar melodias doces ou sentimentos melancólicos; cantar como um golfinho ou como uma diva pop oitentista. Para o ícone da música alternativa – e, porque não, da música pop no geral –, podemos dizer: “estamos nos sentindo bem”.