Teto para Dois tem elenco perfeito, mas um roteiro ambíguo e estereotipado

Texto alternativo: Cena da série "Teto Para Dois" . Nela, podemos ver os personagens em um apartamento elegante e moderno, olhando um para o outro, enquanto a mulher branca na esquerda usando um vestido branco de bolinhas pretas e um homem negro de barba na direita usa um terno e gravata preta sob uma blusa branca com listras e segura flores.
O best-seller da autora Beth O’Leary foi adaptado para às telas pelo streaming Paramount+ (Foto: Paramount+)

Anna Clara Leandro Candido

Há anos, o Cinema e a Televisão se alimentam da Literatura para produzir sucessos de audiência e público. Isso vai desde o clássico Orgulho e Preconceito às séries de filmes Harry Potter e Jogos Vorazes, entre outros. Esse também é o caso de Teto para Dois, livro da autora inglesa Beth O’Leary, que recentemente foi adaptado em uma série original do Paramount+.

O romance acompanha a história de Tiffany (Jessica Brown Findlay) e Leon (Anthony Welsh), dois jovens adultos londrinos que, por motivos pessoais, passam a morar sob o mesmo teto e dividir a mesma cama, mas em horários diferentes. O velho clichê de só haver uma cama para dois desconhecidos — como os açucarados livros De Férias com Você, Imperfeitos e Uma Farsa de Amor na Espanha é o pano de fundo para o desenvolvimento do improvável romance entre uma mulher extrovertida, animada e vítima de um antigo relacionamento abusivo, e um homem introvertido, tímido, com complexo de herói e problemas familiares.

Teto para Dois sofre das mesmas vantagens e desvantagens que qualquer obra literária passa ao ser adaptada para as telas. Ao passo que acerta na escalação dos atores, o  roteiro de Rose Lewenstein altera certas cenas e funções dos personagens ao ponto de prejudicar a essência e composição da história. Os atores principais, Brown Findlay e Welsh, são a encarnação completa dos protagonistas e coadjuvantes em tela: desde a caracterização até os pequenos revirar de olhos de Findlay e os suspiros exasperados de Welsh, todos os gestos transmitem a essência literária de Tiffany e Leon.

Cena da série "Teto Para Dois". Na esquerda temos o ator Anthony Welsh que interpreta Leon,  homem negro com barba e vestindo uma blusa de frio preta, está ao lado da atriz Jessica Brown Findlay que intepreta a personagem Tiffany, uma mulher branca de cabelos ondulados, usando uma blusa vermelha de mangas compridas
Jessica Brown Findlay e Anthony Welsh vivem muitos momentos românticos em tela como Tiffany e Leon (Foto: Paramount+)

O mesmo vale para os atores Jonah Hauer-King, Shaniqua Okwok e Gina Bramhill nos papéis de Mo, Maia e Rachel, amigos de Tiffany, e Shaq B Grant, como Richie, irmão de Leon. Cada um deles deu um show em suas respectivas interpretações e deixou um gostinho de quero mais na boca dos espectadores, justamente porque não receberam o tempo de tela ou desenvolvimento que mereciam.

Esse é o caso da personagem Rachel, que teve sua personalidade e valores distorcidos em prol de um enredo fraco e estereotipado. No livro, ela era uma amiga leal e companheira que, apesar de um pouco avoada, ajudou Tiffany a passar por diversos momentos difíceis. Já na série, foi transformada em uma mulher invejosa e mesquinha apenas para promover um intriga desnecessária com base na rivalidade feminina. Isso destruiu as boas mudanças na construção da personalidade de Rachel, ajudando a evidenciar o roteiro fraco da série que reescreveu uma personagem para adicionar um drama inoportuno ao desenvolvimento da obra.

Outra afetada pela adaptação televisiva foi a pequena Holly. Enquanto, no livro, ela e Richie eram os conselheiros e indicadores das mudanças de Leon; na versão televisiva, a pequena foi usada como um tapa-buraco criado pelas más escolhas do roteirista Rose Lewenstein, como o fato de tirarem a iniciativa de achar o Sr. White do Leon e passar essa tarefa a menina. No fim, Holly também teve seu destino alterado com relação à trama original e acabou com um final vazio, desproporcional à importância que tinha na vida de Leon.

Cena da série Teto para Dois. Nela, vemos Tiffany, uma mulher branca de cabelos ondulados, que está  atrás do microfone em um pódio com uma roupa de babados e bolinhas e dois homens e duas mulheres ao seu lado esquerdo, todos vestidos
Tiffany é uma personagem complexa que teve seu processo de cura injustiçado pelo roteiro e direção da série (Foto: Paramount+)

No fim, o roteiro de Lewenstein e direção de Peter Cattaneo cometem o maior dos pecados com o livro de Beth O’Leary ao tratarem o processo de cura de uma mulher que acabou de terminar um namoro tóxico, tomado por anos de gaslighting, de maneira ambígua. Teto para dois é e sempre foi um romance com enredo clichê, mas sua essência nunca se baseou apenas nisso.

A complexidade dessa narrativa está na história de Tiffany, uma mulher que por anos nunca acreditou que poderia, por exemplo, pegar o metrô sozinha ou enxergar sua própria beleza por causa do gaslighting que seu ex-namorado Justin (Bart Edwards) realizou durante sua relação. O livro é uma obra linda sobre o autoconhecimento, a cura e as dores de superar um trauma tão pessoal e perigoso como  um relacionamento amoroso abusivo.

Esse tipo de agressão não é facilmente visível para a própria vítima, muito menos para a sociedade, e por isso não pode ser adaptada de uma forma ambígua como foi feito em Teto para Dois. É visível que a intenção da roteirista e do diretor foi retratar como as pessoas ao redor da vítima podem interpretá-las mal e gerar certo afastamento, pois exilar a parceira e fazê-la ser erroneamente compreendida por seus amigos e familiares é uma das táticas de controle e de dominação que o agressor usa em um relacionamento tóxico.

Cena da série Teto para Dois. Nela, vemos a personagem Tiffany com seu cabelo ondulado, cortado na altura do ombro, usando um Blaze xadrez preto e branco, blusa preta e acessórios, está olhando para o computador enquanto segura sua própria mão.
Jessica Brown Findlay já atuou em outros títulos como Downton Abbey e Admirável Mundo Novo (Foto: Paramount+)

Contudo, a imprecisão e relatividade com que o roteiro tratou a relação de Justin e Tiffany fez com que, em muitas cenas, ela fosse caracterizada com atitudes e escolhas de uma garota estereotipada como pegajosa, e não uma vítima de um abuso em recuperação. Não basta colocar cenas da personagem em um ataque de pânico ou — para indicar a superação da violência — fazendo uma escolha diferente do que faria antes, como uma forma de retratar as consequências desse tipo de abuso na vida e saúde da mulher. É preciso, tanto dentro e fora da trama, verbalizar, externalizar, ter conversas e explicações do que está acontecendo como uma forma de processar o trauma.

No livro, esse é o papel de Mo, que é psicólogo e o primeiro personagem a perceber a situação de Tiffany, acolhê-la e guiá-la da maneira correta. Contudo, não há essa pessoa e voz na série, o que cria brechas para interpretações equivocadas por parte do público que nunca teve contato com o romance, e, infelizmente, ainda não está completamente apto a entender as complexidades e consequências que um parceiro violento e suas manipulações psicológicas causam na vida de uma mulher. No início do seriado, Tiffany fica embriagada e é levada para casa por Mo, mas em nenhum momento eles conversam sobre o que está acontecendo e, no decorrer da trama, ela não busca ajuda profissional, como acontece na obra original.

A série tem êxito em seu retrato da paixão entre dois personagens que despretensiosamente encontram um no outro a inspiração e força para superar seus piores momentos, além de contar com atores maravilhosos em suas interpretações, que realmente conseguiram tirar do papel todos os amados membros da obra de Beth O’Leary. No entanto, o restante não prova seu valor em enredo, roteiro e direção; nem como uma adaptação, nem como uma obra original. 

Teto para Dois é uma história que merecia mais: mais cuidado, mais tempo e mais investimento. Ainda assim, a produção carrega em si uma mensagem necessária para desenvolver a empatia e conscientização em uma sociedade ainda muito disfuncional na compreensão das complexidades de um relacionamento abusivo e suas consequências.

Um comentário em “Teto para Dois tem elenco perfeito, mas um roteiro ambíguo e estereotipado”

  1. Isso aqui tá incrível! Tinha lido e assistido já mas não tinha notado todas essas discrepâncias do livro pro filme!
    Infelizmente todas pra pior, péssimas escolhas dos diretores, por mais que todo o resto seja bom, foi mal adaptado. E esse é um erro grave.

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