Slipknot: o horror cotidiano, de Iowa a Botucatu

Adote animais e louve o Cramunhão

Nilo Vieira

O segundo disco do Slipknot é uma audição dolorosa (já comecei o texto dando piada de graça pra detratores). Urros quase ininterruptos, linhas percussivas marretadas, guitarras de afinação baixa com timbres que beiram o nojento, intervenções eletrônicas barulhentas. Pra coroar, a masterização, vítima da loudness war, joga todos os níveis no vermelho. 14 faixas, 66 minutos de duração.

A sonoridade punitiva traduz o background tenso. Após o sucesso inesperado da estreia homônima em 1999, a pressão da indústria cresceu. Mesmo com a banda dividida – a ponto de uma separação ter sido cogitada como protesto -, os trabalhos começaram pouco tempo após o término das turnês anteriores. O abuso de drogas era pesado.

Além do caos da vida pessoal dos nove integrantes, o produtor Ross Robinson sofreu um acidente de moto durante o processo. Ele, que já era conhecido por usar de táticas psicológicas, engrossou o caldo. Para a faixa-título, disse para Corey Taylor que gostaria que ele entrasse na parte mais insólita de sua mente; o vocalista gravou a canção nu e se cortando com vidro. Outro caso conhecido é o da intro “(515)”, cujos gritos são resultado do DJ Sid Wilson extravasando a morte de seu avô.

Halloween levado a sério: estileira muito mais foda ainda

I’M ALWAYS READY TO DIE BUT YOU’RE KILLING ME

Análises intelectualizadas de Iowa (2001), ainda que válidas, acabam por romantizar uma obra cujo potencial reside em sua visceralidade. O negócio começa com a afirmação de que pessoas são uma merda, afinal. Acompanhando as letras no encarte, não demora para perceber que os versos tem teor contraditório. “Everything Ends” inicia acusando terceiros em tom de voz cínico, mas é óbvio que a raiva do eu lírico é absurdamente interna.

Shallow skin, I can paint with pain
I mark the trails on my arms with your disdain
Everyday it’s the same – I love, you hate
But I guess I don’t care any more…
Fix my problems with the blade
While my eyes turn from blue to gray
God, the worst thing happened to me today
But I guess I don’t care anymore…

(…)

My flaws are the only thing left that’s pure
Can’t really live, can’t really endure
Everything I see reminds me of her
God I wish I didn’t care anymore
The more I touch, the less I feel
I’m lying to myself that it’s not real
Why is everybody making such a big fucking deal?
I’m never gonna care anymore

Com exceção da didática “Gently”, assinada por Michael “Clown” Crahan, essa narrativa explosiva e inconsequente permeia o disco inteiro. A constante crítica da fúria expressada aqui como juvenil e gritaria sem sentido ignora o básico: a proposta aqui não é pensar a raiva, é liberá-la do modo mais direto possível. A raiva pode não ter razões coerentes e ainda incomodar em níveis absurdos.

O alívio de blasfemar contra o vento pode ser mais eficaz e imediato do que sobrepensar e remoer sentimentos ruins – cá um surto recente que não me deixa mentir. “The Heretic Anthem” é um exemplo peculiar em Iowa: o dedo do meio mais direto pra mídia possui o refrão mais marcante e pegajoso do álbum. Além do Iron Maiden, qual outra banda conseguiu emplacar um clássico de estádios envolvendo o número da besta? É a prova de que, apesar da pose, o Slipknot sabe se divertir. E convida o público na empreitada – “se você é 555, eu sou 666” virou um mantra nos shows do grupo.

MY LIFE WAS ALWAYS SHIT, AND I DON’T THINK I NEED THIS ANYMORE

É curioso. O especial de Halloween deste ano começou com um crássico trash do mestre John Carpenter, no texto com nostalgia aflorada do camarada Adriano Arrigo. Antes de vir escrever no Persona, falei muito sobre Iowa (spammei, praticamente) na internet. Não foram poucas as pessoas que sugeriram que meu apreço pelo LP se dava por pura nostalgia. Divertido ver que o ambiente crítico conserva suas picuinhas, em plena era de reavaliação cultural de gêneros antes renegados.

E pior que percebi não ser o caso. O começo do então vício coincidiu com os primeiros sinais de depressão, ainda em 2009. Minha crush detestava Slipknot, e no meu mundo mental fantasioso entendia isso como um sinal fatalista. Caçoava um colega por achar o noneto “pesado demais”, e no ano seguinte tiraria sarro por ele considerá-los o suprassumo do peso. Adquiri o cd físico em 2010, na transição penosa pro ensino médio. Nada que mereça saudades.

Em entrevista ao Alternative Press, Corey Taylor sugere: “(…) já disse antes, mas aquele álbum soa tão espesso que você pode vesti-lo. Ele tem uma certa qualidade que eu só consigo comparar, de certa forma, com o que você ouve nos discos do Big Black (…)“. Pode não ser uma comparação precisa em termos sonoros, mas há uma semelhança notável entre Iowa e Atomizer (1986): a fúria jovem resultante do tédio de municípios pacatos. Embora aprecie minha cidade natal, reconheço que Botucatu se encaixaria no retrato oferecido pelo clipe de “Left Behind”.

Minhas revisões de Iowa forneceram várias descobertas proveitosas. Percebi que nunca havia ouvido com fones, e qual não foi a surpresa ao constatar os timbres muito mais definidos e bem equalizados? O baixo do finado Paul Gray, que julgava inexistente, agora tomava conta do headset. As contribuições de Sid Wilson e Craig Jones apareceram mais nítidas e situadas.

A influência de Neurosis na longa faixa-título rendeu replays constantes madrugada afora. Reparei que vários trechos palhetados não fariam feio em algo do Slayer ou até bandas mais extremas, e confirmei que as músicas pinçadas da demo Mate. Feed. Kill. Repeat. (1996) ganharam mais peso e detalhes. “Gently” e “Skin Ticket”, que costumava pular, davam dinâmica ao tracklist agora. Se Slipknot (1999) soava como a lenda urbana de uma criatura escrota nascendo em um porão, em Iowa esse bicho toma corpo e sai pra rua.

I SEE THE FUTURE, THE FUTURE IS BLEEDING

Bauru, 2017. Madrugada. Lendo e ansioso quanto ao trabalho de conclusão de curso. Música com vocais não é escolha comum pra ocasião, mas de Iowa consegue me manter focado e empolga a tarefa. Não vivo mais em uma cidade quieta. Julgo ter evoluído o mínimo não ser mais o pirralho de anos atrás. As agonias não são iguais. Sequer odeio as pessoas ao meu redor.

Mas de alguma forma, esse disco faz sentido pra mim. Talvez seja pela noção de que, se você se considerar odiado, fica mais alerta no mundo ainda me sirva. Bauru me faz sentir assim ou ainda tenho paranoias a resolver? Quiçá gostar do álbum com outros ouvidos dê certa sensação de paz com o passado, orgulhoso dele ou não. Tem o fato de que gostar de Slipknot irrita as pessoas próximas, agora por outros motivos – como assim, você que é super conceitual! Crítico! Vai ver eu só não levo tudo tão a sério e literalmente como antes.

Ou os riffs e o trampo do Joey Jordison na bateria são maneiros, e a abordagem vocal é repleta de nuances. Como eles cantam é quase mais relevante do que as letras em si – a melodia do refrão de “My Plague”, ou a impressão de que o “no one is safe” de “Disasterpiece” parece ter sido gravado com o Chris Fehn trajando sua máscara. Ah sim, tem as máscaras. São legais, especialmente a de cabeça com espetos e expressão vaga. O encarte é bem feito também.

É aquele trecho situado entre a vontade de querer trocar ideias com o universo e só aceitar que é uma sensação pessoal, impossível de se traduzir. Sentir alguma coisa nova, por mais boçal que seja. Sair do terror claustrofóbico que é a rotina por alguns minutos – ou aprender a conviver com ele com uma trilha condizente.

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