Jamily Rigonatto
O que faz um artista ser reconhecido como transgressor? Caso seu pensamento tenha sido direcionado a elementos como roupas, maquiagens e outros compositores estéticos, repense todas as suas certezas, pois Sem Vergonha te mostra que o segredo está na alma livre. Estrelado por Maria Alcina, o musical biográfico fez parte da 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, na seção Mostra Brasil, e, como a artista que o protagoniza, estabeleceu que limites não são uma opção válida. Afinal, se não for para ultrapassar as barreiras, de que vale fazer qualquer coisa nessa vida?
Operária de nascença e com todos os ‘nãos’ apontados para o seu rosto, a cantora nadou contra a corrente para crescer no meio musical nacional. Agora, seguindo o fluxo de uma vida, ousa entregar algo único na produção de 79 minutos que se classifica oficialmente como documentário, mas tem um formato tão singular que, novamente, se amplifica em possibilidades. Performático, teatral, sonoplasta e cenográfico são alguns dos vocábulos que definem a deliciosa narrativa roteirizada por Thiago Brito.
Na obra, duas versões de Maria Alcina se encontram: a jovem sonhadora, representada ficcionalmente, e a própria, em carne e osso, que invade as cenas com relatos e cantoria à la brasileira – representando, com propriedade, a cultura que sempre se orgulhou de ter. Apesar de inspiradora, essa história não ficcional remonta a dificuldade de ascensão quando se trata de Arte no país e não deixa de destacar uma das grandes vilãs do cenário: a Ditadura Militar.
Na levada enérgica, bem humorada e, como o nome da obra diz, sem vergonha, da cantora, as denúncias nunca ficam de lado, nem que seja para se inserirem de maneira ácida ou ilustrada, à exemplo da performance atrevida com Ney Matogrosso. Na década de 1970, esses comportamentos eram fortemente repreendidos e chegaram a ser punidos com a voz da personalidade sendo calada pela censura por 20 dias, o que fez com que ela voltasse ainda mais focada em ser autêntica. As músicas com duplo sentido e grandes doses de conotação sexual são interpretadas durante a obra, relembrando um Brasil quente, sensual e, acima de tudo, vivo.
Essa dificuldade de ser Arte em um país de pão e circo, reverbera na decaída de Alcina dos holofotes, algo que afeta diretamente o reconhecimento da persona como um marco da história até hoje. Em reflexo, o orçamento do longa-metragem é visivelmente baixo, mas com o ‘jeitinho’ brasileiro, tecidos variados e coloridos se tornam parte da cenografia assinada pelo diretor de arte Uirá Clemente. A saída entra como uma jogada de mestre, fazendo com que mais uma linguagem, o Teatro, entre em cena. A sensação é de que tudo se consolida em cima de um palco, uma verdade quando se trata de Maria Alcina.
Em movimentos bastante transitórios e alinhados, a direção de Rafael Saar escolhe passear entre registros reais da época mais jovem de Alcina, cortes de jornal, revistas, gravações, recriações fictícias de cenas, representação de performances e muito mais para amarrar a montagem. Caso Sem Vergonha fosse um livro, com certeza entraria no ramo das chamadas narrativas epistolares, misturando materiais para chegar a um registro consolidado de mais de 50 anos de carreira.
Outro aspecto extremamente presente nos frames da produção é a dança. Esta, se impõe de maneiras coreografadas, mas também sem nenhuma via de regra, representando a corporeidade solta da artista que relata: “eu só consigo cantar com o corpo todo”. O misto de Música e ritmo transforma a coisa toda em um espetáculo de sons, onde os passos e notas criam aquela sensação de satisfação em quem assiste.
Talvez pelo tempo curto de um filme ou pela longa história de Maria Alcina, alguns takes parecem ter mais assunto do que espaço para se encaixarem, algo que deixa o telespectador perdido no viés cronológico da coisa. Não é como se não fosse possível chegar no meio da sessão e aproveitar o carisma, no entanto, se o objetivo for entender a carreira da artista, assistir duas vezes acompanhado de um ‘bloquinho’ de notas e uma aba de pesquisas vai se fazer necessário.
Sem Vergonha é quase uma viagem: psicodélica, engraçada, crítica, ácida e com gosto de chanchada. Sinceramente, relembrar o motivo de Maria Alcina ser uma pedra no sapato do conservadorismo e uma referência musical nesse país é um deleite ou, adentrando a ousadia, um sonho molhado. Transgressão definitivamente ganha um novo significado depois de vislumbrar a obra.
Nas linhas de uma singularidade ímpar, um filme sobre uma artista nunca foi tão irreverente e esse viés se encaixa como uma luva para retratar alguém tão indimensionável quanto Alcina. Nos antros de pessoas, arte, obras, músicas e performances mornas e repetitivas, não ter vergonha de ser é corajoso e memorável. “Eu era o que eu era porque eu nasci assim” é mais que uma aspas, uma lição para aqueles que se fogem do inescondível: o eu.