Ana Júlia Trevisan
Cantora, compositora, multi-instrumentista e escritora, Rita Lee nunca foi um bom exemplo, mas é gente fina. A Rainha do Rock Brasileiro emplacou vários hits durante sua carreira e é a mulher que mais vendeu discos no território nacional, passando das 50 milhões de cópias em toda sua carreira e conquistando dezenas de discos de ouro, alguns de platina e até de diamante. Sendo sua estreia solo em 1979 um marco na música brasileira, o sucesso do seu primeiro disco se repetiu no segundo. O clássico Rita Lee (1980) foi precursor da aventura em estilos musicais para além do rock, escancarando os tons da cantora, e em 2020, em celebração aos 40 anos desse sucesso, o trabalho foi relançado em vinil.
O álbum da década de 80 tem forte presença de seu marido Roberto de Carvalho. Juntos eles formam um dos casais mais bem sucedidos (e queridos) da música nacional. As composições conjuntas começaram em 1978 com Disco Voador, a segunda faixa do álbum Babilônia, quando Rita Lee ainda cantava com os Tutti Frutti, banda liderada pelo guitarrista Luis Sérgio Carlini. Os cúmplices, que também fizeram muitos ir a loucura em 1979 com o sucesso Mania de Você, assinam seis das oito músicas do disco de 1980.
Rita Lee nunca teve tabus em suas músicas, cantando sobre sexo, menstruação e drogas. Suas íntimas composições com Roberto de Carvalho são praticamente autobiografias dos amantes calientes. Ou como diz o grande compositor baiano Tom Zé: “Eles ofereceram a geração de 1970 a educação sexual mais privilegiada. As músicas deles podem ser chamadas de sexo-pedagógicas.”
Essa fala de Tom Zé é justamente sobre a música de abertura do disco de 80, a famigerada Lança Perfume. O sucesso da canção foi tamanho que muitos conhecem o álbum por ela, que é carro chefe do trabalho de Rita. O sucesso da música não ficou restrito ao território nacional, como lembra a própria cantora em sua autobiografia lançada em 2016. Lança Perfume permaneceu por dois meses em primeiro lugar nas paradas de sucesso da França, entrando no Top 10 da Billboard. E, em 1988, o jornal Daily Mirror revelou que graças à essa música, Rita Lee era a cantora favorita do Príncipe Charles. Todo esse reconhecimento são itens da lista de grandiosidade da Santa Rita de Sampa.
Em sua autobiografia, a cantora também conta que a roupa usada no encarte foi especialmente feita pela estilista Norma Kamali, e mais tarde a talentosa Elis Regina mandou-lhe uma carta dizendo “Bicho, copiei aquele teu modelito da capa do Lança Perfume e tô lindona, ha-ha-ha”. Elis, de quem Rita afirma não sentir saudades, mas sim abstinência, foi umas das primeiras a falar sobre a importância que esse disco tem na sociedade. Vale lembrar que no ano de lançamento vigorava a ditadura militar, o que ressalta como Rita foi, e ainda é, uma mulher destemida que usou da sua fama para quebrar barreiras que existiam no caminho feminino.
A segunda música do disco é a genial Bem-Me-Quer. O título faz alusão a brincadeira de origem francesa de despetalar uma margarida, a cada pétala retirada a pessoa fala ‘bem me quer’, ‘mal me quer’. A genialidade da canção em paralelo a brincadeira não para no título, seus versos “eu sou uma praga/maria sem vergonha do seu jardim” e “sou flor que se cheire em qualquer lugar” faz a margarida personificação do eu-lírico. O ritmo que a música se segue auxilia a criação de todo imaginário.
Em sequência vem Baila Comigo. Essa é a primeira canção do álbum escrita apenas por Rita, ou melhor, ‘pelo Santo’, como a cantora gosta de falar. A artista sonhou com essa música quando estava grávida de seu filho Juca, contando que ao acordar encaixou o violão no barrigão e em 5 minutos a canção estava pronta. A letra sentimental que nos conta uma história inspirou o autor Manoel Carlos, que em 1981 levou ao ar uma novela com mesmo nome. Aliás, trilhas de novela comprovam a genialidade da cantora, que é recordista no tema, com mais de 40 composições embalando as tramas.
Com esse trabalho de Rita Lee é iniciada uma transição na carreira da artista, que começou como uma cantora de rock psicodélico durante o tropicalismo com a banda Os Mutantes. Na década de 80, é notável que a artista pretende conversar com um público maior através de suas letras. O produtor do disco e responsável por fazer isso acontecer foi o memorável Guto Graça Mello, que também toca guitarra e percussão no disco. Aliás, ele não foi o único grande nome da banda, salvo Roberto de Carvalho na guitarra, violão, piano e sintetizador; a ficha técnica ainda traz o mago do pop Lincoln Olivetti (piano, sintetizador, bass synth, Minimoog e arranjo de metais), Robson Jorge (guitarra), Jamil Joanes (baixo), Picolé (bateria) e Chico Batera (cowbell, timbales e marimba).
A excelente e sofisticada produção combinada a inigualável banda contribuiu para que Rita não ficasse apenas presa no rock ‘n’ roll que estava habituada, mostrando a artista gigante que ela é, que consegue passar por vários ritmos sem perder a irreverência. Um exemplo é Shangrilá, inspirada numa composição da cantora que foi censurada durante a ditadura, a canção traz uma melodia latina, cantada de maneira única por Rita, que assume sua própria personalidade dentro do conjunto.
O flerte com bolero aparece na triunfal Caso Sério, inspirada na cantora e rainha do rádio Ângela Maria se apresentando à meia-luz numa boate cubana decadente e enfumaçada. A canção, que é mais uma autobiografia do casal Rita&Roberto, foi uma das de destaque em meio a coletânea hits da artista, e seu estouro nas rádios se dá por conta da dedicação em todo processo de produção. Caso Sério inicialmente seria uma bossa nova, mas naturalmente em estúdio transformou-se nesse bolero que se encaixa mais adequadamente no que é passado pela letra da música, com seu ritmo que faz sentido em meio a tudo que é proposto no disco.
Mesmo com essa diversidade musical, o rock não é abandonado. A ocorrência se dá em Nem Luxo Nem Lixo e Orra Meu. A primeira, que com inteligência apresenta um jogo de paradoxos, foi cantada em uma live histórica para comemorar os 40 anos do álbum. A escolha da canção foi feita por se tratar de “uma música que tem a ver com os tempos de agora”. Ao fim da música, Santa Rita de Sampa protetora dos animais, principalmente das ovelhas negras, deixa o recado: “aproveite a quarentena para adotar um bichinho. Melhor amigo”. Com toda diversidade, a proteção aos animais é a única bandeira que a cantora jamais deixou ou deixará de carregar.
Aliás, Nem Luxo Nem Lixo não é a única música atual. O disco envelheceu muito bem em contexto geral, com sua presente crítica ao momento histórico brasileiro. A João Ninguém foi inspirada no então presidente militar da época, João Figueiredo, que em agosto de 1978 disse que “o cheirinho do cavalo é melhor (do que o do povo)”. Cantando “João Ninguém/Não tem ideal na vida/Além de casa e comida/Tem seus amores também/E muita gente que ostenta luxo e vaidade”, Rita Lee fala sobre alguém que conseguiu se tornar poderoso mas não tem um ideal democrático.
O grandioso trabalho recheado de canções inteligentes e irônicas se encerra com Orra Meu. Sem dúvidas, não havia escolha melhor para fechar o álbum do que essa. Composta sem a ajuda do brilhante Roberto de Carvalho, esse rock puramente paulistano é a assinatura de Rita Lee. “Porque essa vida é muito louca e loucura pouca é bobagem”. Apesar de não ter participado da composição, a guitarra de Roberto é essencial para a vida e forma dessa música.
Não é atoa que Rita Lee recebe o título de rainha. Sem se preocupar com tabus, construiu um álbum diversificado, passando por vários e consagrando-se em todos eles com músicas que conversam muito bem entre si, com fluidez atemporal. O instrumental, pela necessária influência de Roberto, se faz presente em faixa a faixa consolidando o sentido de tudo aquilo que é exposto. Salve Santa Rita!