Julie Anne Alves
Com mais de trinta anos de estrada, premiações internacionais e canções que salvaram gerações, o grupo de rap Racionais MC’s foi contemplado com o documentário Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo, disponibilizado pela Netflix. Dirigido por Juliana Vicente, o longa estreou na plataforma em Novembro de 2022 como um dos mais acessados mundialmente, e conta, em pouco menos de duas horas, a história do quarteto a partir do olhar dos membros e de quem os acompanha ao longo dos anos.
A produção levou, ao todo, sete anos para ser finalizada, tendo começado com uma entrevista em 2015 entre a diretora e os rappers. Sintetizar anos de carreira em um único documentário não foi fácil: as versões iniciais contavam com cinco horas de duração e todas as informações pareciam muito valiosas. Essa imensidão de registros demandou um atencioso processo de revisão, fornecendo ao público um produto final sem lacunas técnicas e cumprindo sua missão coletiva em ser uma obra “política, artística, e de quebrada”.
Com uma construção de imagens capaz de ambientar os espectadores em diferentes décadas, e ao mesmo tempo conectá-los com a realidade atual, o efeito gerado pelo filme é de acolhimento e curiosidade. Apesar da seriedade por trás da obra, isso se dá de maneira ainda mais íntima e orgânica para os fãs, fazendo com que a duração se tornem uma conversa prazerosa e muito enriquecedora. Se hoje o grupo é um fenômeno na Música é porque seu legado foi construído ao longo de muito trabalho coletivo. Nesse sentido, antes de entender o longa, é necessário conhecer quem são os Racionais MC’s.
Um grupo de muitos
Pedro Paulo Soares Pereira cresceu na região do Capão Redondo – periferia da Zona Sul de São Paulo, conhecida antigamente como a mais violenta da capital – e por lá viveu a escassez de oportunidades e “o kit de esgoto a céu aberto e parede madeirite”. A fim de fugir das adversidades e mudar a realidade de tantos que vinham do mesmo lugar, Mano Brown canalizou sua revolta em letras de rap, que futuramente lhe proporcionaram reconhecimento não só dentro de sua comunidade, mas ao redor do mundo inteiro.
Já Paulo Eduardo Salvador nasceu na Zona Sul da periferia de São Paulo. Antes da criação dos Racionais MC’s, o jovem se mantinha vivo através da Música, com influências internacionais que lhe permitiam sonhar com outra trajetória para sua vida, uma versão distante do cenário de violência ao qual fora submetido. Ice Blue hoje em dia se destaca por ser um grande entusiasta do hip-hop nacional, além de se manter ativo em debates sociais.
Kleber Geraldo Lelis Simões é paulista da Zona Norte e iniciou seus trabalhos na Música agitando a madrugada do centro paulistano com fitas cassetes e vinis, que em seguida ganharam bases e mixagens únicas capazes de revolucionar a arte dos toca-discos no país. KL Jay é a figura por trás da sonorização da banda e revelou ao mundo a complexidade por trás dos processos criativos que envolvem uma faixa de rap.
Edivaldo Pereira Alves é o segundo membro também da Zona Norte de São Paulo. Antes de atuar no grupo, já se apresentava em casas de shows e residências. Edi Rock é considerado um dos mais notórios poetas do país, devido a sua contribuição para a música negra brasileira, pois sua lírica subjetiva e de protesto social atua na construção ativa da identidade musical de artistas pretos e periféricos.
As semelhanças entre os membros do Racionais MC’s chama atenção, porém não se deve resumi-los aos contextos de origem de cada um. Para além da raça, da favela e da música, Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e Kl Jay são artisticamente inovadores. É nesse ponto que o grupo se conecta, faz seu nome e é reconhecido na produção audiovisual.
Correria ontem, sucesso hoje
A união dos quatro ocorreu no final da década de 80. De início, eram aparições mais tímidas, pela necessidade de conciliar a Música e outros trabalhos para sustento e pela falta de suporte nas periferias. Foi no centro de São Paulo, na altura da estação São Bento, que a cena começou a virar. A luta para acessar esses espaços nunca foi fácil, só a dificuldade de deslocamento levava horas e expunha o abismo social entre eles e a elite paulista, que podia desfrutar livremente de todo o aporte cultural e social que ali existia, enquanto nas periferias só se destacava a miséria.
O movimento de ida para o centro paulista foi um combustível na integração de negros vindos de todas as regiões da cidade, na tentativa de se reunirem em comunhão com os que eram semelhantes. O reconhecimento e apoio do povo preto, bem como a manifestação e proteção de seus interesses, eram os objetivos iniciais dos Racionais, já a busca pelo sucesso nunca foi uma prioridade. Essa atuação ativa incomodava os poderes públicos, principalmente na época de surgimento do grupo, logo após a ditadura militar brasileira e com forte repressão policial.
O grupo surge com a ideia de se comunicar com grupos da periferia, mas de início as letras e álbuns ficaram limitados ao universo de estudantes e professores de faculdades, que de certa forma analisavam a realidade de maneira objetificada como se as músicas e os relatos ali contidos fossem meros objetos de pesquisas. O fetichismo que assombra as produções pretas é uma realidade já conhecida pelos artistas. Na contramão desta realidade, o documentário busca ressaltar um grupo de interesses semelhantes, mas que é formado por sujeitos e suas subjetividades, essa abordagem viabilizou a conexão de produções posteriores com os públicos periféricos.
É só em Homem na Estrada que ocorre a virada na conexão com a periferia. Esse processo se deu também com a promoção de shows gratuitos nas favelas, que atraíam multidões. Junto a isso, as repressões truculentas da Polícia Militar acompanharam o avanço do sucesso do grupo e tiveram episódios marcantes, escancarando o racismo dentro da organização policial que reverbera na realidade de pessoas marginalizadas.
Resgatar o povo preto é também um processo de fornecer direitos fundamentais que foram sistematicamente negados. Educação, saúde, liberdade e cultura são direitos básicos, mas que para muitas periferias ainda são distantes. Os MC’s foram capazes de se sensibilizar com essas ausências e passaram a promover shows dentro da extinta Febem. Com eles, havia também o respeito às produções artísticas feitas no cárcere, o que mostrava uma valorização das pessoas e de suas manifestações até mesmo em contextos de segregação social.
O salto na carreira do grupo chega com o lançamento do álbum Sobrevivendo no Inferno, uma obra que explora os sentimentos mais íntimos em letras severas, angustiantes, porém, libertadoras. Em 1998, os Racionais são premiados no MTV Awards, a faixa que consagrou o grupo foi Diário de um Detento. “O Sobrevivendo foi minha carta de alforria“ declara Ice Blue sobre o impacto gerado na trajetória do artista.
Os anos 2000 marcam a popularização dos MC’s dentro das favelas. A periferia é representada como uma potência nas canções, sendo destaque positivo na produção artística do grupo, alimentou o sentimento de revolta. As letras, para além de um grito, fizeram essas pessoas serem vistas em pistas de danças, shows, premiações, e se sentirem partes de uma construção. O efeito direto disso pode ser percebido com a valorização da negritude e construção de uma autoestima para os pretos.
De todas as cenas apresentadas no documentário Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo, a morte do jovem Luiz Fernando da Silva Santos, de 19 anos, em um show ocorrido em Bauru no ano de 2007, é pungente. Após um conflito, o jovem foi baleado e teve seu corpo arremessado no palco. A partir desse momento, o grupo encerrou suas atividades e aparições. O vazio deixado foi a resposta encontrada para as próprias questões que assombram o grupo. Em que momento haviam errado? E por que a saída para os problemas atuais ainda era a mesma que o rap tentava anular desde sua criação?
Viu-se que não bastava cantar a ideia de progresso sem que ela acontecesse efetivamente na sociedade. É difícil falar de Ensino Superior quando o pobre só é visto como tema de estudos acadêmicos, mas não para frequentar esses espaços. Da mesma forma, é difícil falar de amor quando o que se tem é desesperançosa por toda parte. O retorno do grupo aos palcos na Virada Cultural de 2013 exigiu que o público entendesse de outra forma as letras, a mensagem clara era para que as pessoas se “mantivessem vivas”.
Racionais MC´s é uma potência em cima ou fora dos palcos. A relação de admiração, orgulho e apoio dos fãs faz do grupo uma comunidade ideal para encontros e pertencimento. A trajetória apresentada no documentário é emocionante e instigante, gerando um sentimento de proximidade com quem já pode prestigiar o filme. Todavia, a produção pode ser considerada de curta duração, uma vez que várias passagens não foram destrinchadas na profundidade que mereciam.
A complexidade das obras dos Racionais e a relevância do grupo para os públicos periféricos pedem uma sequência documental capaz de pensar mais de perto sobre as questões apresentadas. Os fãs que acompanham o grupo a mais tempo sentiram falta da presença de enredos que fizeram parte da formação dos artistas, como é o caso do rapper Sabotage, que não apareceu no documentário, mas é de extrema importância para a solidificação dos artistas.
Imaginar que a história de quatro jovens pretos, periféricos e à margem do sistema seria documentada e divulgada para todo o mundo era uma realidade difícil de se acreditar por muitos. Se não fosse a persistência de Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay isso não seria possível. O grupo ensina que mobilizar, lutar e sonhar são realidades possíveis para aqueles que nunca tiveram oportunidades. Ouvi-los em Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo gera admiração e esperança: os manos sabem o que fazem e são referências quando o assunto é comunicar com suas músicas. Seja nos palcos, em uma playlist ou até mesmo na Netflix, os Racionais MC’s são revolucionários.
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