Bárbara Alcântara
“All girls to the front! I’m not kidding” (Todas as meninas para frente! Não estou brincando). Foi com esse pedido inusitado que as bandas riot grrrl – movimento que surgiu em meados da década de 90 – foram ganhando notoriedade dentro da cena punk norte-americana. Munidas de guitarras, baixos, baterias e microfones, elas bradavam “we want revolution girl style now!” (Nós queremos a revolução ao estilo das garotas agora!), pedindo visibilidade dentro de um movimento que se mostrava, apesar dos ideais libertários, cada vez mais misógino e distante das pautas políticas femininas. Escreveram fanzines, organizaram festivais, enfim: conseguiram provar que eram capazes de liderar não só suas próprias bandas, mas todo um movimento social. Elas deram uma nova cara ao feminismo.
Para entender melhor essa história, precisamos voltar no tempo: 1977, explosão do punk rock ao redor do mundo. Um reflexo da era “paz e amor” e todas essas falácias dos hippies nos anos 60. O punk rapidamente ganhou espaço e popularidade entre os jovens, por se basear no D.I.Y. (Do It Yourself ou Faça-você-mesmo) – nada mais atraente do que a certeza de que qualquer um poderia ter uma banda, bastava querer. Por essa razão, as músicas eram simples: poucos acordes bastavam, e as letras externalizavam uma frustração e insatisfação com o mundo à volta. Os shows eram, em geral, organizados em lugares pequenos, com poucas pessoas, sem muita infraestrutura. A divulgação era feita por meio de cartazes confeccionados pelos próprios integrantes das bandas ou amigos. Todos participavam, contribuindo com o que pudessem: fotografias, colagens, cartazes, fanzines etc. Mais do que um estilo musical, o punk era uma válvula de escape.
Com o passar dos anos, toda essa rebeldia foi tomando forma e ganhando conteúdo. O “Now I Wanna Sniff Some Glue” dos Ramones foi dando espaço para o “State Violence State Control”, do Discharge. Os materiais que antes difundiam reflexões sobre o mundo em geral, passaram a falar de política e questões sociais. Por volta de 1982, o que era estilo musical cedeu espaço a um movimento de contracultura, com pautas específicas, e então surgiu tudo isso que existe até hoje: dos festivais às brigas de gangues (punks versus neonazistas – não confunda com skinheads, são coisas diferentes). Do punk ao street punk, ao hardcore punk e ao hardcore straight edge. Muitas vertentes, muitas nomenclaturas, inúmeras bandeiras levantadas. Anarquismo, comunismo, antifascismo, antirracismo, anti-homofobia, antissexismo, etc.
O que isso tudo tem a ver com riot grrrl? É que todo esse processo contou com participação feminina, que acabou “escondida” atrás das bandas de meninos. A lista é extensa: Debbie Harry do Blondie, Nico do Velvet Underground, Poly Styrene do X-Ray Spex, Gaye Advert do Adverts e Lorna Doom do Germs. E também Patti Smith, que, além de cantar, escrevia e recitava poemas. Mesmo sendo parte essencial do movimento, as mulheres não eram respeitadas como os homens. Elas eram admiradas – ou rejeitadas – não pela qualidade de seus projetos, mas pelos seus atributos físicos. A presença delas em bandas, muitas vezes, tinha um único intuito: despertar desejo. Muitas se sentiam desencorajadas nesse ambiente cada vez mais infestado de testosterona.
Se nem o palco escapava do machismo, imagine a plateia. Por serem rodas de dança e pancadaria, os famigerados mosh pits ou “pogos” atrapalhavam, quando não impediam, as mulheres de estarem próximas do palco durante os shows de suas bandas preferidas. Simplesmente por elas terem… peitos! Além disso, quantos não eram os casos de assédio relatados – quando eram relatados. Algumas iam aos shows apenas para segurar o casaco do namorado, outras eram julgadas a partir da sua vida sexual. Uma gigantesca contradição para um espaço que se destinava à contestação de valores sociais.
Foi nesse contexto de insatisfação não só com a sociedade, mas também com a maneira como eram tratadas e vistas na cena punk, que muitas mulheres se uniram. Cheias de ideias e vontades, passaram a usar a militância feminista como arma. Adaptaram os meios: montaram bandas, começaram a escrever fanzines, organizaram festivais e eventos com a finalidade de questionar o papel da mulher na sociedade, dar-lhes voz e criar uma rede de apoio. Colocaram em palavras, tornando visível a incômoda opressão sofrida por todas – e isso foi mais do que o suficiente para o movimento engatar.
“(…)PORQUE nós queremos e precisamos encorajar e sermos encorajadas em face de todas as nossas inseguranças, em face do macho-roqueiro-cerveja que nos diz que nós não podemos tocar nossos instrumentos, em face das “autoridades” que dizem que nossas bandas/zines/etc são as piores nos Estados Unidos e (…)
PORQUE nós sabemos que a vida é muito mais do que sobrevivência física e nós estamos muito cientes que a ideia do punk rock “você pode fazer o que quiser” é crucial para a chegada da revolução de garotas que nós buscamos para salvar a vida psíquica e cultural de garotas e mulheres de todos os lugares, de acordo com os termos delas, não os nossos. (…)
PORQUE eu acredito com todomeucoraçãocabeçacorpo que garotas constituem uma força revolucionário que pode, e irá, mudar o mundo de verdade.”
Trecho do Riot Grrrl Manifesto
O que fizeram em suas bandas foi, basicamente, manter as estruturas do punk (os acordes e letras simples, bem ao estilo D.I.Y.) subvertendo o conteúdo. Os temas passaram a ser a reivindicação dos direitos das mulheres, libertação sexual, denúncias de casos de sexismo, visibilidade lésbica e afins. Um grande exemplo disso é a música “Cool Schmool”, da banda Bratmobile. Na época em que foi gravada, elas eram um trio – Allison Wolfe no vocal, Erin Smith na guitarra e Molly Neuman na bateria. Mesmo sem baixista, conseguiram ocupar, em 1993, com Pottymouth, a lista dos “10 Melhores Álbuns do Ano que Você Provavelmente Não Ouviu”, da revista Spin. Tinham, além do punk, uma forte influência indie e Britpop.
As integrantes do Bratmobile foram conhecidas também por seus projetos paralelos. Wolfe foi autora do conhecido zine Girl Germs. Neuman, além de escrever o zine Riot Grrrl, criou, junto com seu ex-marido, a extinta gravadora Lookout! Records, que foi posteriormente gerenciada por Erin. Durante o hiato do Bratmobile, entre 1993 e 2002, integraram outras bandas – Cold Cold Hearts, The Frumpies, PeeChees, Partyline.
Corin Tucker, Carrie Brownstein e Janet Weiss trouxeram um pouco do indie rock e alternativo com o Sleater-Kinney. Tiveram 7 álbuns gravados em estúdio até 2006, por gravadoras como Sub Pop, Kill Rock Stars e Chainsaw Records, e escreveram hinos feministas que fizeram história – “And will there always be concerts where/Women are raped/Watch me make up my mind instead of my face/The number one must have/Is that we are safe” (E sempre haverá shows em que/mulheres vão ser estupradas/assista enquanto eu tomo decisões em vez de me maquiar/o principal é que estejamos todas seguras). Alguns dos projetos paralelos das meninas foram Cadallaca, Heavens to Betsy, Excuse 17, The Spells e Wild Flag.
L7, por sua vez, uniu tribos, misturando punk com metal. Conhecidas pelos seus cabelos coloridos e riffs pesados e pegajosos, foram responsáveis por hits como “Pretend we’re dead” e “Shitlist”, que fizeram parte de trilhas sonoras de filmes e jogos de video game. 7 Year Bitch e Babes in Toyland contribuíram com o grunge.
(A morte da vocalista da banda The Gits, Mia Zapata, e da guitarrista do 7 Year Bitch, Stefanie Sargent, ambas vítimas de estupro, afetou as suas companheiras de banda. Os casos serviram de inspiração para a composição da letra da música “Dead Men Don’t Rape” e do álbum Viva Zapata!)
Mesmo com uma imensa quantidade de bandas, Kathleen Hanna, do Bikini Kill, acabou se tornando a porta-voz. Fazia um punk simples e direto, com letras muito polêmicas, e usava o palco como espaço de militância. Foi a responsável pelas frases “Girls to the front!” e “Revolution Girl Style Now”, que viraram máximas do movimento. Insistia para que qualquer tipo de abuso ou situação desconfortável causada por algum homem fosse denunciado – ele seria convidado a se retirar do local imediatamente. Escrevia as palavras “slut” e “rape” em seu corpo. Não tolerava qualquer forma de opressão: era a vez das mulheres aproveitarem os shows!
A influência que tiveram não se restringiu apenas ao público feminino. Um dia, Kathleen pichou na parede do quarto de seu amigo Kurt Cobain a frase “Kurt Smells Like Teen Spirit”, se referindo ao cheiro do desodorante feminino “Teen Spirit” que ficava em Kurt após ele passar o dia com Tobi Vail, baterista do Bikini Kill, até então sua namorada. Foi daí que surgiu o grande hino do Nirvana. Além disso, por sua proximidade com as meninas e o feminismo, adotou várias dessas posturas em entrevistas. Merece destaque o aviso presente no encarte do álbum Incesticide: “Se qualquer um de vocês odeia homossexuais, pessoas de cores diferentes ou mulheres, por favor, nos faça esse favor: nos deixe sozinhos, porra! Não venha aos nossos shows e não compre nossos álbuns.”.
Mas a posição de destaque, com o passar do tempo, pesou. “Acabou sendo bem difícil ser a garota do Bikini Kill, ou a feminazi do Bikini Kill, a odiadora de homens do Bikini Kill. Ou eu não era feminista o suficiente, não era o tipo certo de feminista, feminista demais, vendida, eles não gostam da sua música, você não pode usar batom. Haviam tantas expectativas e além disso, como artista eu sentia que toda vez que eu me sentava para escrever uma música eu deveria escrever um hino feminista”, disse Kathleen no documentário The Punk Singer, lançado em 2013. Ela sofreu muitas ameaças, o que resultou em períodos de depressão. Apenas comprovando que, o machismo contra o qual tentavam incessantemente resistir era não só real, como também muito nocivo.
A história desse movimento eu conheci aos 13 anos, depois de assistir ao famigerado longa 10 coisas que odeio em você e ver a personagem principal do filme dizer que sua banda preferida era Bikini Kill. Entendi na pele o significado de tudo isso em um show da banda Dominatrix. Foi quando, pela primeira vez, me senti segura e confortável em um “rolê” punk; eu era a protagonista, não apenas uma coadjuvante da cena. Foi quando comprei o meu primeiro zine, passei a fazer parte do meu primeiro coletivo. Descobri que havia, sim, muitos casos de machismo na cena underground, e que tudo o que eu sentia não era pura paranoia! Foi quando o meu universo se expandiu de forma assustadora: conheci uma porção de meninas envolvidas em um milhão de projetos diferentes. Me senti parte integrante de um todo – um todo que resistia a uma estrutura de dominação muito antiga e de estrutura sólida: o patriarcado. Meninas agitavam, “pogavam”, dançavam, davam stage dive (o mergulho do palco), cantavam, tiravam a camiseta e ficavam só de sutiã quando sentiam calor.
Até hoje, em todo o Brasil, a cena punk feminista é muito forte. Os eventos são realizados, organizados muitas vezes por coletivos autônomos e autogestionados, com rodas de discussão, vendas e trocas de zines, apresentações musicais e muita experiência compartilhada. Existem bandas femininas espalhadas por todo o país: Anti-Corpos, Ratas Rabiosas, Santa Claus e Deb & The Mentals em São Paulo (capital), The Biggs em Sorocaba (SP), NoSkill em João Pessoa (PB), Trash No Star e Ostra Brains no Rio de Janeiro (capital). Blogueiras, como a Carla do Cabeça Tédio e zineiras também estão presentes!
“vá trabalhar para morrer/ no seu mundo materialista/ não quer ideias/ só quer regras/ sociedade está matando / suas regras não são nada/ não quero sua sociedade”
As russas do Pussy Riot também sofreram influência direta daquelas meninas do noroeste dos Estados Unidos. Criaram a banda para protestar publicamente, tocando em praças e ruas, contra o governo de Putin e a favor de causas feministas e LGBTs. Ficaram famosas quando tocaram na Catedral do Cristo Salvador em Moscou e duas de suas integrantes foram presas. A frase “Free Pussy Riot” estampou capas de jornais e revistas ao redor do mundo! Elas receberam apoio, inclusive, de Kathleen Hanna, que se manifestou publicamente sobre o fato em uma entrevista para a Pitchfork , além de um vídeo gravado para o seu site.
E, para a felicidade de muitas pessoas, os últimos anos trouxeram boas notícias. A primeira grande novidade foi que Kathleen Hanna, após largar a sua última banda, o Le Tigre, retornou aos palcos liderando o The Julie Ruin, ao lado de Kathi Wilcox, ex-baixista do Bikini Kill. Sleater-Kinney lançou um álbum novo em 2015, o No Cities to Love, muito aclamado pela crítica. L7 está de volta com a formação original. Ainda no ano de 2016, Molly Neuman, que até então era vice-presidente da Associação Americana de Música Independente (A2IM), aceitou um cargo no Kickstarter, maior site de financiamento coletivo, para cuidar da área musical. Quem pensou que elas tinham desaparecido, ledo engano. Continuam na caminhada, tanto liderando bandas quanto produzindo-as.
Foi uma bomba, caótica e revolucionária, que explodiu na década de 90, mas deixou marcas até os dias atuais. Como cantou a banda Bulimia, as meninas descobriram que nada as impede de gritar, nada as impede de falar e elas não precisam se esconder, porque não são piores que ninguém. Mas o principal aprendizado foi que “punk rock não é só pro seu namorado”. Elas estão cada vez mais fortes e unidas, reivindicando seu espaço no mundo. Esperto foi o prefeito de Boston, que decretou o dia 9 de abril como o dia oficial Riot Grrrl. Assim, ninguém esquece que o lugar da mulher é onde ela quiser – e ai de quem tentar impedir…
Olá! Ano passado escrevemos um artigo autoral resultado de nossa pesquisa sobre o movimento Riot Grrrl! Há pontos em comum em nossos artigos, portanto vou deixar o link aqui: http://www.modadesubculturas.com.br/2016/05/-historia-do-movimento-riot-grrrl-punk-feminismo.html
#revolutiongirlstylenow