Leonardo Teixeira
O segundo ano de Pose começa com uma viagem. Conhecemos a Hart Island, uma ilha real que abriga o maior cemitério de indigentes dos EUA. Durante o auge da epidemia de AIDS/HIV, vítimas do vírus cujas famílias não podiam arcar com um sepultamento “convencional” acabavam ali. Os corpos dessas pessoas em específico eram enterrados em uma cova coletiva, separada das demais, “para que os outros corpos não fossem infectados”, afirmou uma autoridade da época.
É esse o cenário da nova fase do show produzido por Ryan Murphy, Brad Falchuk e Steve Canals se inicia. Um cenário de descaso, violência e desinformação. Mas a esperança é o mote da temporada, que triunfa mais uma vez ao dar nome e endereço para pessoas que lutam diariamente para serem enxergadas.
Estamos em 1990, três anos depois dos acontecimentos finais do último episódio. O clima nos ballrooms é de euforia e otimismo, pois Madonna acaba de lançar seu clássico Vogue direto para o topo das paradas. A canção, que homenageia a dança nascida nos bailes, representa a primeira oportunidade de muitos ali de se verem em algum produto da grande mídia. Será que é chegada a hora da comunidade se tornar mainstream?
É esse o debate inicial da temporada. Se atualmente a expectativa de vida de mulheres trans não passa dos 35 anos no Brasil, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais, é inimaginável o tamanho das adversidades que elas sofriam na década de 90. O desejo por mudança é genuíno e necessário.
Blanca é a mais otimista do grupo, crente de que a visibilidade proporcionada pela Rainha do Pop era o que faltava para que o seu grupo saia da margem da sociedade. Sua positividade acaba dando liga aos episódios. A interpretação de MJ Rodriguez, na mesma medida ingênua e indignada, é brilhante e tem o peso necessário para que entendamos de onde vem sua inquietação.
A matriarca dos Evangelista se envolve com o ACT UP, um grupo ativista que orquestrou diversos atos de conscientização do HIV na década de 90, em todo o mundo. A reencenação desse elemento histórico é emocionante. Blanca e sua família inclusive fazem parte do polêmico protesto em uma igreja de Nova York, com o intuito de questionar os esforços da igreja católica contra a educação sexual em escolas públicas.
É tempo de mudança também para outros membros do núcleo. Pray Tell (Billy Porter) sai de trás do púlpito e protagoniza uma narrativa delicada, sobre o amor para um homem negro e gay em seus 40 e tantos anos. Enquanto isso, a irreverente Elektra (Dominique Jackson) traz um respiro aos momentos mais sérios e tem seu universo expandido.
A arrogância aristocrática e afiada da personagem aos poucos é desconstruída, revelando uma necessidade de mulheres trans e travestis se armarem com suas palavras (o famoso shade) para se protegerem em um mundo que as mata diariamente.
Outra renovação bem-vinda é a de Angel (Indya Moore). Ainda que o arco que a personagem compartilhava Stan (Evan Peters) na primeira temporada fosse interessante, o crescimento pessoal da garota pedia por mudanças. E não deu outra. O núcleo branco da série foi eliminado e ela já tem outros amores e novos planos.
Os caminhos que ela trilha para realizar o seu sonho levam a discussões relativamente novas na televisão, como a questão passabilidade e os abusos a que uma mulher trans está sujeita na indústria da moda.
Essa é apenas uma das questões inéditas que Pose trás à tona. Os episódios são “temáticos”, cada um trazendo algum tipo de reflexão sobre a vivência queer negra, focando em algum núcleo da série e finalizado com a fala de algum pensador importante. Ainda que, no fim das contas, a noção de passagem de tempo fique um tanto troncuda (problema herdado da temporada anterior), o saldo é positivo.
Ryan Murphy tem aqui o terreno perfeito para as suas já conhecidas acrobacias estilísticas e referências de videoclipe. Mais contido que em momentos como Nip/Tuck e American Horror Story, o produtor e diretor consegue encontrar um bom equilíbrio entre o estranho e o dramático.
Quem brilha de verdade, no entanto, é Janet Mock e Our Lady J. Relações triviais ganham tratamento mais sensível, nas mãos de roteiristas que entendem a profundidade da vivência de suas personagens. Isso fica claro no terceiro episódio da temporada, Buttlerfly/Cocoon, onde o telespectador é colocado numa saia justa: um personagem que amamos muito faz algo que o senso comum e a lei consideram criminoso.
Mas, em um mundo em que instituições trabalham contra pessoas negras ou LGBT, temos nosso senso moral virado do avesso quando o que é certo e o que é justo parecem não ser a mesma coisa.
Esse e outros capítulos da trama apresentam conflitos inspirados em acontecimentos da vida real. Além de enriquecedor, o compromisso do seriado em encaixar suas personagens em momentos conhecidos faz pensar que mulheres e homens trans sempre fizeram parte da história. Isso só não era registrado.
Importante lembrar que Pose não é uma série sobre sobrevivência. É uma série sobre família e amor, sobre encontrar um lar. É como Pray Tell relembra Blanca no último episódio: “O objetivo dos balls é de nos lembrar que não estamos sozinhos”. O sucesso de Vogue pode não ter tirado a cultura dos bailes da margem, mas a comunidade segue vibrante. E cheia de histórias que merecem ser contadas.
Seriado muito bem produzido, divertido, dramático e educativo. Consegue transmitir os medos e os desafios necessários a serem vencidos no mundo LGBT.