Nathan Nunes
Em 25 de Agosto de 1987, morreu Pixote. Fernando Ramos da Silva tinha 19 anos, era casado e pai de uma filha pequena quando foi morto por policiais militares, após ter supostamente assaltado uma empresa em Piraporinha, na região de São Bernardo do Campo. A família viveu para contestar a versão dos agentes, que foram apenas demitidos, mas nunca condenados.
Anos antes, em 26 de Setembro de 1980, Fernando estava alcançando fama e reconhecimento pelo seu desempenho no papel que dá título a Pixote, a Lei do Mais fraco, de Hector Babenco (Carandiru, 2003). O longa, que abriu a Mostra Cinema é Direito do Persona em parceria com o Sesc Bauru na quinta-feira, dia 2 de Março, não poderia ter se misturado à realidade de forma mais trágica, pois o que aconteceu com o intérprete de seu protagonista pouco se difere do descaso do Estado com a vulnerabilidade social denunciada pelos realizadores.
Desde os minutos iniciais da rodagem, Pixote está imerso na difícil realidade das crianças moradoras das ruas de São Paulo, presas por transgressão juvenil e enviadas para se reajustar a sociedade em um reformatório nos moldes da antiga FEBEM. Logo em sua primeira noite no local, ele presencia o estupro de um de seus colegas de quarto. Quando o frio inspetor Sapatos Brancos (Jardel Filho, de Terra em Transe, 1967) lhe pergunta se viu alguma coisa do ocorrido, o menino se cala, ciente das escolhas que deve tomar para sobreviver em um ambiente tão hostil.
Babenco, juntamente com o roteirista Jorge Durán (Não Se Pode Viver Sem Amor, 2011), posiciona Pixote inicialmente sozinho, mas logo o coloca para dividir cena com outros detentos, como Fumaça (Zenildo Oliveira Santos) e Lilica (Jorge Julião). Ecos do neorrealismo italiano podem ser sentidos na captura da realidade nua e crua dessas pessoas, com a câmera sempre muito próxima e a iluminação sombria da fotografia de Rodolfo Sanchez, que também trabalhou com Babenco em O Beijo da Mulher-Aranha (1985).
Ainda assim, há espaço para pontas de poesia e ternura que também eclodem vez ou outra. Notoriamente, temos um belíssimo momento em que Pixote olha para uma figura de Nossa Senhora Aparecida, iluminada por luzes em neon. Poderia a santa lhe tirar dessa situação tão cruel? Poderia ela ser a mãe da qual o garoto sente tanta falta? Poderia ela dar esperança de uma vida melhor?
Mais adiante, Pixote, Lilica e seus companheiros Chico (Edilson Lino) e Dito (Gilberto Moura) fogem da instituição, e o filme foge junto. A narrativa se distancia da dureza desse Cinema quase documental e busca ares de maior e surpreendente alinhamento com o coming-of-age, isto é, o amadurecimento infanto-juvenil. Babenco e Duran entendem que, antes de serem estigmatizados como criminosos pelo Estado, todas essas pessoas são crianças e adolescentes, sujeitos dignamente ao turbilhão de emoções dessa fase da vida.
Para reforçar esse ponto, o longa explora muito o desenvolvimento da sexualidade desses jovens, seja em sua forma mais bruta ou sutil. No primeiro sentido, destacam-se as suas próprias reações em exposição ao sexo, como na cena em que assistem um filme erótico na casa do traficante Cristal (Tony Tornado, de Carcereiros, 2017). Já no segundo, chama atenção o relacionamento complexo entre Lilica e Dito, no qual o segundo está quase sempre confuso quanto à própria condição, uma vez que o fato da primeira ser uma mulher trans evidentemente o faz questionar suas compreensões de masculinidade.
Lilica, em especial, é uma personagem que se destaca profundamente. Diante do aniversário de 18 anos que marca a sua emancipação e os perigos de sobreviver nas ruas do país mais transfóbico do mundo, ela se pergunta, em um determinado momento: “O que pode uma bicha esperar do mundo?”. A cena acontece em um estado de pausa do filme, que troca a sujeira e a criminalidade da noite pelo pôr-do-sol ensolarado da praia do Arpoador, no Rio de Janeiro.
O que a sucede é um daqueles milagres da cinematografia nacional, pois, durante as gravações, Julião estava escalado para cantar Debaixo dos caracóis de seus cabelos, música escrita por Caetano Veloso para Roberto Carlos. Ele sentiu que a canção não encaixava na cena e optou por cantar Força estranha, também de Veloso. Logo, o ator foi surpreendido com um abraço de Fernando, que permaneceu no corte final. “Ficou tão bonito, tão terno”, lembrou o ator, em entrevista à reportagem do TAB UOL.
O terço final apresenta ao público a prostituta Sueli, interpretada por Marília Pêra (Dias Melhores Virão, 1989), em performance tão impactante que lhe rendeu prêmios internacionais, como o estadunidense National Society of Film Critics Awards (NSFC), em 1982. Logo em sua primeira cena, a atriz prova os motivos de tanto reconhecimento, ao contracenar com Pixote dentro de um banheiro onde, horas antes, realizou um procedimento de aborto. A desilusão de seu olhar, o peso em sua cabeça e o cansaço de seu corpo são sentidos na rejeição que ela pratica de imediato com o garoto, apenas para lhe pedir desculpas depois e, posteriormente, construir laços com ele e seus amigos.
Para Pixote, estar próximo de Sueli equivale a estar o mais perto possível em sua vida de uma figura materna, por mais estranha que essa relação possa parecer. Nessa linha, o momento mais representativo acontece quando o menino passa mal e ela o coloca em seu colo, numa imagem que evoca a Pietà de Michelangelo, mas apenas na superfície. Alguns minutos depois, a prostituta o desprende de seu seio e o manda embora de sua casa, sob constatação repentina de que não quer ser mãe.
Assim, Pixote termina o filme novamente sozinho, depois de ter visto tantas pessoas cruzarem sua jornada, apenas para que a vida as tirasse depois. Seu último registro em cena o encontra andando sob um trilho de trem rumo ao desconhecido. Como única certeza, está sozinho e abandonado à própria sorte, não apenas pelos antigos amigos e colegas, mas também pelo Estado.
A vida de seu intérprete não teve um caminho tão diferente. Fernando tentou ser ator depois do sucesso do filme, com participações em Eles Não Usam Black-Tie (1981) e Gabriela, Cravo e Canela (1983), mas não conseguiu progredir na carreira, obrigado a abandonar a atuação devido a pressão de um mercado que não aceita profissionais pouco instruídos. Com amparo do Estado, educação e qualidade de vida bem estruturada, as possibilidades de futuro para Fernando teriam outras portas, mas, sem qualquer previsão, só é fato que seu caminho seria mais justo.
Por fim, vale lembrar que, 42 anos depois do lançamento de Pixote, pouco mudou. Segundo o Censo de Crianças e Adolescentes em Situação de Rua, realizado em São Paulo em Maio de 2022, há mais de 3 mil crianças vivendo nas mesmas condições que o protagonista. Seja no passado ou no presente, o Brasil continua sendo um país que, por meio do desamparo, obriga os mais fracos a fazerem a própria lei.