Nathan Sampaio
Um dos conceitos mais famosos do século XX é o American Way of Life. Criada pelo mercado publicitário no pós-guerra e propagada durante a Guerra Fria, essa expressão prega o estilo de vida estadunidense, marcado pelo trabalho árduo, conquista de bens materiais e construção de uma família feliz. O propósito era vender um imaginário de como seria a vida nos Estados Unidos para os outros países. Porém, essa fantasia se distancia – e muito – da realidade. Diversos filmes expõem isso, um dos mais belos e profundos é Paris, Texas, que completa 40 anos em 2024.
O longa acompanha a história de Travis Henderson (Harry Dean Stanton), um homem de meia idade, desaparecido há quatro anos, que é encontrado vagando pelo deserto do Texas. Após ser resgatado pelo seu irmão, Walt (Dean Stockwell), e voltar à sociedade, o protagonista terá que se reconectar com o filho, Hunter (Hunter Carson) – que ficou sob a tutela da sua cunhada e irmão –, e descobrir o paradeiro da esposa (Aurore Clément). Enquanto isso, são dadas pistas sobre o que ocorreu durante seu sumiço.
Essa produção franco-alemã recebeu muito destaque na época e, até hoje, desponta como um cult classic, por causa da qualidade do roteiro escrito por L.M. Kit Carson, Sam Shepard e Walter Donohue, e pelo uso de cores vibrantes, mérito do diretor de Fotografia Robby Müller. Ambos setores estão alinhados sob o comando de Wim Wenders para apresentar ao espectador um contraste entre a ideologia dos Estados Unidos perfeito e a árdua e complexa realidade da população.
A base da crítica é centrada em Travis que, ao contrário do seu irmão que possui carro, casa no subúrbio, carreira bem estruturada e uma família estável, falhou em todos os aspectos da sua vida, destruindo sua relação com a esposa e filho, perdendo a casa, não tendo emprego e possuindo a roupa do corpo como seu único bem. Ou seja, enquanto um é o perfeito exemplo do sonho americano – pregado por Hollywood –, o outro reflete as mazelas que a maioria dos estadunidenses vivem.
Além disso, temas mais pesados como violência doméstica, alcoolismo e relacionamentos tóxicos são tratados durante a narrativa com o devido peso e trauma que isso causa aos personagens. Tais assuntos são, infelizmente, muito presentes na sociedade norte-americana e também mundial, porém, costumam ser ocultados pelo Cinema hollywoodiano para manter o ideal de país sem violência.
A dicotomia presente na narrativa é reforçada a todo instante pela Fotografia. Müller aplicou uma paleta de cores composta por vermelho, azul e branco para as cenas focadas em Walt, que representam a bandeira dos Estados Unidos e o sonho estadunidense. No entanto, Travis é constantemente banhado pela cor verde, que demonstra a instabilidade do personagem e os conflitos presentes em sua trajetória. A coexistência dessas colorações potencializa os temas do roteiro, além de criar visuais deslumbrantes.
A direção de Wenders também transita entre o melancólico e o esperançoso, como um desdobramento dos temas do enredo. A incapacidade de atingir o sonho norte-americano perturba Travis, porém, quando ele percebe essa realidade, passa a aceitá-la e, assim, ele nota que a felicidade e realização pessoal podem estar na conexão com seu filho. Até mesmo a conclusão – bem agridoce – do longa reforça que essas duas sensações podem coexistir.
Para além do tom crítico e negativo, o filme ainda carrega muita beleza em sua história, que provém da conexão entre os personagens. Travis tem um arco de reconciliação, tanto com o mundo quanto com o filho Hunter, que se sente distante do pai após seu desaparecimento de quatro anos. A busca para reconstruir esses laços é gradual e muito bonita devido às interpretações dos atores.
Harry Dean Stanton apresenta, a princípio, um personagem desconectado da realidade, que pouco se comunica e transparece uma despreocupação absurda com os acontecimentos ao seu redor. Entretano, com o decorrer da narrativa, sua interpretação ganha tons mais doces quando aborda a reaproximação com o filho; é notável o esforço de Travis para se tornar novamente um pai. A magia desse comportamento pode ser quebrada quando mais traços de personalidade são revelados, mostrando que o protagonista é muito problemático e, até mesmo, perigoso para aqueles ao seu redor, e que tais comportamentos talvez nunca mudem. Sua persona é complexa, podendo ser odiada e amada na mesma medida.
Outra personagem fascinante é Jane, esposa de Travis, que conta com uma interpretação magistral de Nastassja Kinski. Suas poucas aparições durante a projeção são impactantes e apresentam os momentos mais emocionalmente intensos da narrativa. A atriz consegue, com pouco tempo de tela, construir uma personalidade bastante complexa, qxue convive diariamente com as decisões erradas que fez no passado e a angústia de se encontrar distante do filho.
Complementando a família principal está Hunter, filho de ambos. A interpretação de Carson é singela, porém, bastante eficaz, já que o ator consegue transmitir os sentimentos de tristeza e amargura de quem, há tempos, foi abandonado pelos pais. Pode-se dizer que o maior mérito da atuação desse trio principal é conseguir apresentar personagens tão profundos e tão reais; a sensação é de que todas aquelas pessoas poderiam realmente existir.
Walt e Anne Henderson, perfeitamente interpretados por Stockwell e Clément, compõem um bom elenco de apoio, ainda que suas personalidades não apresentem o mesmo nível de profundidade que os protagonistas. A presença de ambos na trama serve para escancarar a diferença entre as famílias e servir de base para a crítica à sociedade norte-americana perfeita.
Wim Wenders fez um trabalho genial na direção deste longa, conseguindo mesclar o tema pesado e melancólico com um formato de filmagem muito criativo e singular. O diretor foge do óbvio e opta por usar enquadramentos e movimentos de câmera pouco usuais, de forma que cada frame se distancie do anterior e ajude a contar um pedaço daquela história. As paisagens desoladoras do deserto, as construções complexas das cidades e as diferentes estradas que os personagens percorrem inspira o autor a valorizar cada cenário mostrado.
Por mais que seja um filme de quase duas horas e meia de duração, a condução de Wenders é tão eficaz que proporciona um ritmo bastante ágil à narrativa. Cada cena, diálogo, movimentação de atores e enquadramento é pensado para avançar a trama, seja falando dos objetivos dos personagens ou, então, explorando aspectos de suas personalidades que instigam o espectador a ficar curioso pelo o que vem a seguir.
Na época de lançamento, Paris, Texas foi merecidamente um sucesso de público e crítica, tendo recebido a Palma de Ouro de Melhor Filme no Festival de Cannes e o Prêmio René Clair da Academia de Cinema Italiano em 1984. No ano seguinte, Wim Wenders ganhou o BAFTA de Melhor Direção. O longa também inspirou diversas bandas ao longo dos anos, tanto em álbuns como canções, entre os artistas influenciados estão Primal Scream, Nada Surf, Travis, U2 e Lana Del Rey.
Em 2024, o diretor receberá o prêmio European Lifetime Achievement, pelo conjunto da sua obra pela Academia de Cinema Europeu, instituição que ele foi fundador e presidiu de 1996 a 2020. Além de Paris, Texas, Wenders é celebrado por longas como: Movimento em Falso (1975), As Asas do Desejo (1987) e Dias Perfeitos (2023), que foi indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.
Paris, Texas é uma obra-prima de Wim Wenders, possuindo um tom melancólico e intimista que, ao mesmo tempo, consegue ser esperançoso; o filme tem um tom agridoce, muito bem vindo à experiência. A trajetória de Travis e Jane é complexa, dolorosa e contrasta com as histórias simples e fantasiosas feitas por Hollywood. Toda a jornada emocional, cheia de altos e baixos, proposta pelo longa, é sensacional e consagra a obra como uma das melhores do Cinema.