Egberto Santana Nunes
Há 21 anos, o grupo de rap RZO lançava o clássico single O Trem, cujo seguinte trecho “Pegar o trem é arriscado, Trabalhador não tem escolha, Então enfrenta aquele trem lotado” iria grudar nas mentes do público, chegando até a virar sample da banda de hardcore paulistana Discarga. Quando o problema nos trens descrito na letra se agrava, a Companhia de Transportes Metropolitano (CPTM) invoca a PAESE – Plano de Apoio entre Empresas em Situação de Emergência. Além disso, é também o nome pensando entre quatro amigos para designar a mais nova produtora musical independente da Zona Leste.
Com quase um ano de produção, o projeto lança hoje (28) seu primeiro trabalho, Mitolorgia, a mixtape do rapper Brenno Sajermann, ou como ele prefere ser chamado, o Mito. Brenno é um dos componentes do selo, junto com Lucas Simas, responsável pela produção musical, Joana Souza, que cuida do estilo e caracterização da equipe e Gabriel Oliveira, o Dakazza, que finaliza na parte musical, ocupando o cenário do trap na região. Quando o assunto é audiovisual, o time conta com a direção de Luan Lucio, músico e professor na E.M.A (Escola de Música e Áudio), em Poá, mesmo local onde foi realizada a pré-audição da mixtape no sábado (24), onde o Persona marcou presença.
O rap esteve presente no âmbito do grupo desde seu nascimento e acabou fazendo com que os quatro se aproximassem com foco em uma meta em comum. Simas, que começou a produção musical sozinho, com vídeos no youtube, conta que “conheceu Breno nas batalhas e ofereceu os ‘beat’ que tava vendendo para ele, ele curtiu e mandou uma letra que ele tava escrevendo em cima do beat”, e a troca de letras, opiniões e produções começava aí. Com o Gabriel foi o mesmo, conhecido a partir de um amigo em comum entre os dois, a Joana. “Até que chegou uma hora que eu tava conversando com o Dakazza [Gabriel] e falei ‘mano, a gente devia fazer um selo, lançar nossos próprios trampos, do nosso jeito, com a qualidade que quisermos’, desde o começo pensamos no Breno e e também precisávamos de alguém que cuidasse do design, dos panos, então pensei na ‘Jô’ [Joana] que tem uma visão estética muito parecida com a nossa.”
Moradores da região de Poá, Suzano e Ferraz de Vasconcelos, todos são, de alguma forma, produtores e consumidores culturais. Sobre o cenário artístico na periferia, a resposta é uníssona: “muito fraco”. Dakazza complementa: “visibilidade tem daqui, mas é daqui pra lá. O foda é que aqui não tem nenhuma iniciativa governamental ou alguma coisa como tem pro centro, para os artistas daqui. Aqui não tem nada, de verdade. Como as cidades são muito separadas no extremo leste, cada um é um prefeito, a secretaria de cultura é uma só, então acaba não tendo uma junta na cena cultural do extremo leste em si”. “Investimento nessa área, é muito raro”, é muito raro”, Breno completa.
Se o apoio governamental não existe, a PAESE conta com o suporte de artistas da região, como a de Luan Lucio, poaense e baterista da banda Seventh, do selo Daddy Bear Label, especializada em rock e folk na região. Luan cedeu o espaço da E.M.A, em Poá para as gravações instrumentais da mixtape, que também teve espaço no estúdio Seiva, em Suzano.
Muito se engana quem pensa que o pseudônimo Mito tem a ver com alguma alusão política ou até mesmo com a arrogância do MC. “É Mito porque Mito significa uma mentira, certo? Eu tava em um momento da minha vida muito depressivo mesmo, a depressão nunca bateu tão forte. Eu estava realmente me sentindo um derrotado, fracassado. Tranquei a ‘facul’, tava com ‘problema no trampo’, com família, saí de casa… foi uma fase muito difícil, mano. Eu precisei pensar tudo que eu queria ser, como eu queria viver sem essa depressão, aí eu materializei tudo isso em um personagem e eu decidi viver esse personagem para sair da situação que eu tava.”, Breno declara. Hoje em dia ele acredita ser mais fácil pensar um “personagem o Breno que eu vivia depressivo” e enxerga que se tornou o Mito que está dentro do álbum.
A mixtape Mitolorgia conta com 9 faixas, sendo que 8 possuem participações especiais de artistas do Alto Tietê e todas foram produzidas e mixadas por Simas. Entre as colaborações, além de Simas e Dakazza, as faixas também contaram com as vozes do coral The Blacks, de Suzano. O título inicial do trabalho seria Mitologia, mas o produto final fez o Mito pensar novamente. “A gente fez uma mistura de vibes, porque são 9 faixas, 9 vibes diferentes que se compactuam nesse Mitolorgia, como essas vibes se misturaram todas, elas se interligam umas com as outras, porque se você parar para perceber, uma faixa tem ligação com a outra. Então é uma orgia sonora, entendeu? E como nenhuma música eu canto 100% sozinho, são vários feats, então é uma orgia de parcerias também, mano.”
Desde a batidas mais agitadas, até algo mais reflexivo e pessoal ou até mesmo sobre o amor, o Mito comprova a sua versatilidade e não perde o tom em nenhuma faixa, encaixando na produção feita por Simas. Nas influências, ele pensa alto e entrega: “me baseio muito quando eu quero cantar, no flow, no jeito que eu quero mostrar a mensagem e eu acho que eu conseguiria achar minha originalidade me baseando no Eminem”, ele acredita que “se treinar bem a dicção” consegue chegar lá; realmente é difícil não pensar no pupilo do Dr. Dre ao ouvir “Camarão no Camarim”, um dos singles divulgados. Nas brasilidades, o MC se inspira no Tim Maia, na forma de “como passar a dor em forma de música”, confessa que chorou vendo o filme dele e só foi a história do cara”.
Simas também não economiza e pensa alto nas influências. “Kanye West é influência número 01, tá ligado?” Na trabalho do Kanye, ele comenta o fato do rapper, estilista e produtor juntar o sample e os sintetizadores“. Se tu ouve o Fantasy, você vai ver que o jeito que ele usa os samples junto com os sintetizadores e instrumentos ao vivo como guitarra, entre outros, eu acho muito foda, tá ligado? Porque normalmente ou o cara faz uma produção sample-based ou com sintetizador, não são todos os produtores que misturam as duas coisas e eu acho que o Kanye West é o melhor nisso.”
Em ‘Toda cria quer ser rei’, Simas comenta que tentou um pouco disso. “É um sample violino no fundo e eu construí todo em volta dele com sintetizador de percussão pra caralho. Isso é uma coisa que eu gosto muito de fazer.” Além do Yeezus, Simas se inspira também em nomes como J Dilla e Madlib, na questão do recorte dos samples e no loop. No rock, o Jack White é quem manda, cujo o baixo da música Steady she Goes do The Racouneters, uma das bandas de White, é alvo de sample em Malotes, durante toda a música. “Gosto pra caramba da forma como ele monta os arranjos, eu gosto muito dos riffs, dos arranjos, das linhas de baixo”.
Para o futuro do selo, Joana se aproxima. “A gente quer fazer umas roupas que as pessoas se identifiquem, seja com modelo, seja com estampa e que elas vejam como uma coisa acessível.” Na questão musical, pretendem convidar artistas da região para produzir suas músicas e lançar no canal do Youtube, enquanto a mixtape do Dakazza é feita.
Entre as apresentações, palmas e risadas, no meio da pré-audição uma senhora se levantou e comentou: “olha, eu já passei da geração de vocês, tenho 46 anos, não sou da geração de vocês, já passei dessa época, mas eu gostei e está muito bom, e se a minha geração está curtindo, podem ter certeza que estão no caminho certo!” E entre referências à cultura pop, redes sociais, filmes clássicos que tanto rappers consagrados da atualidade declamam em suas letras, a questão da proximidade com o público que mais precisa ouvir a mensagem é questionada, e pode ser que talvez, na periferia da Grande São Paulo, isso esteja acontecendo.