Old Man Logan: o quadrinho inspirou o filme?

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Capa da edição 66 de Wolverine Volume 3, começo do arco Old Man Logan

Eli Vagner Rodrigues

Se você é daqueles que acham que os quadrinhos e os filmes de heróis infantilizam o público, tem alguma razão; mas, diante da atual indiferença em relação à própria crítica, sobretudo aquela que se coloca como resistência a sistemas culturais hegemônicos, este parece ser um problema menor. 

Por outro lado, diria um entusiasta do mercado de cultura, a indústria do entretenimento exibe sua competência exatamente na cópia e na readequação. Não é diferente com a nova aventura cinematográfica de Wolverine, Logan (2017, de James Mangold). O filme explora apenas alguns elementos da obra dos quadrinhos que lhe deu origem, Old Man Logan (2008), mas isto não a desclassifica, pelo contrário, apresenta, como afirmamos, o que a indústria do entretenimento faz de melhor: adaptações para um público cada vez maior. O roteiro de Mark Millar e a arte de Steve Mcniven figuram entre as melhores produções da nona arte (arte sequencial, quadrinhos), mas não é muito palatável para o público mais amplo.

Em primeiro lugar, porque exigiria muitas explicações e contextualizações que inviabilizariam o trabalho de um roteirista de cinema. Segundo, pelo fato de o roteiro de Millar, na obra original, não explorar o tempo todo o sentimento de paternidade de Logan. Na versão cinematográfica esse efeito sentimental, supostamente esperado pelo público, garante uma parcela do sucesso. A obra dos quadrinhos é decididamente anárquica em sua estrutura e narrativa – os ideais heroicos foram deixados de lado, as características que classicamente são associadas a infantilização do público também. Pátria, heroísmo, união, companheirismo e anseios humanistas (ou transhumanistas) não dão mais os motivos para a ação.

No lugar de tais ideais, emergem desolação, ódio, vingança e, sobretudo, desesperança. O próprio ideal de busca científica, que no fundo é uma busca pela verdade (que Bruce Banner já encarnou), se transforma em abominação e bizarrice. Sim, o desafortunado pesquisador é um personagem central da estória original e está em franca oposição com o herói mutante. Os cientistas, como já ocorreu inúmeras vezes, se transformam rapidamente em vilões, isso já é trivial. Mas este Hulk de“Old Man Logan, e toda sua prole degenerada, tem algo de maligno, isto é, não guarda a inocência do monstro acuado e inconsciente que o Hulk, em algumas estórias, encarna.

A faceta inocente e trágica foi, por razões óbvias, a preferida pela indústria cinematográfica nas diversas versões nas quais ela retratou o monstro verde como símbolo das forças irracionais e incontroláveis que a ciência pode liberar no homem. Por outro lado, pode-se dizer, o universo dos quadrinhos é mais cínico, pois a história do Hulk é longa e nem só de inocência, ou inconsciência, viveu o “herói”. Não podemos esquecer que ele já foi leão de chácara em Las Vegas em uma fase bastante amoral e satírica. Mas a estória aqui é do Wolverine, outro suposto inocente.

Old Man Logan Bruce Banner Junior

Por falar em amoralismo e, consequentemente, em moralismo, este é o único traço que permanece na personalidade de Wolverine, tanto em Old Man Logan, quanto no filme, neste que é um universo a parte em relação às sequências temporais iniciadas no cinema com a franquia X-Men. O que ainda nos prende à um universo de ideais é o sentimento de família, único motivo que ainda move o herói canadense. Claramente inspirado em Rastros de Ódio (1956) de John Ford, estrelado por John Wayne, Natalie Wood e Jeffrey Hunter, o roteiro e, por assim dizer, seu terceiro ato reativa, por meio da vingança pela família as pulsões selvagens de Logan. Nada como uma vingança para colocar as coisas no lugar.

Se nosso sentimento de admiração pelo herói, nossa adesão ao espírito heroico não pode ser mais reivindicado por valores como a pátria, o grupo, a classe e a humanidade, uma vez que o humanismo heroico ou foi desmascarado ou parece fora de moda, ainda resta o sentimento visceral pelos laços de sangue. A diferença fundamental entre a obra dos quadrinhos e o filme é o apelo sentimental um tanto óbvio por parte deste último.

Na obra original, soluções criativas de Mark Millar para recolocar o herói em ação depois de uma tragédia pessoal que extinguiu todo o grupo de “colegas de profissão”, vão de apelos trágicos de fazer o mais cínico e sarcástico leitor se compadecer, até a apelos sutis de humor de gosto duvidoso. O leitor tem um exemplo expressivo do cinismo e da anarquia criativa que envolvem o gibi quando se deparam com uma versão de Ultron Oito como sensível pai adotivo da neta de Peter Parker, candidata à heroína, também amoral, como quase todo mundo no universo “pós-apocalíptico” criado por Millar.

Velho-Logan
Personagens do quadrinho Old Man Logan

Se estes já não fossem bons motivos para encarar a obra, vale ressaltar que a arte de MacNiven responde, talvez, pelo melhor aspecto de Old Man Logan. Destaque para a caracterização da família-bando-Banner, uma mistura de ogros com um estilo redneck, algo que faz lembrar alguma anomalia genética que teria ocorrido entre o Texas e o Alabama. Na viagem de Logan pelos EUA devastados e divididos em zonas de domínio (Hulkland, cinturão do rei do crime, terras do Dr. Destino e quadrante do presidente) pelos vencedores, o herói encontra todos os motivos para fazê-lo voltar a ser o que era, um sujeito violento, sem muita consciência de sua própria identidade e com uma evidente maldição, um sofrido prolongamento de sua existência causado pela mutação e agravado pelas experiências denominadas “arma x”.

O sucesso da edição de 2009 de Old Man Logan, reeditada em vários formatos, deu origem a uma nova série da Marvel, que pode ser acompanhada atualmente nas bancas. Nessa nova fase o universo criado por Mark Millar se desenvolve a partir do final da estória inicial e conta com roteiro de Jeff Lemire e arte de Andrea Sorrentino.

O roteiro de Millar e a arte de MacNiven envolvem os leitores não mais pelos anseios idealistas, mas exatamente por esvaziar do horizonte de expectativas uma série de características atribuídas às representações de heróis. Os ideais de redenção, determinação e bravura parecem estar mais a serviço da sobrevivência e da aceitação de uma realidade estéril e não de um ideal de glória e realização.  Com esse olhar, Mark ironiza a própria função de roteirista em um nicho cultural um tanto imbecilizado pelos fãs de histórias de heróis, e aponta para uma possibilidade que vai além da infantilização, traço já explorado pelos selos Vertigo, Image e Dark Horse e por inúmeras publicações consideradas “alternativas” em relação ao tradicional heroísmo. A indústria do cinema, atenta a essas tendências de desgaste na construção dos personagens, incorpora  elementos da subversão artística originárias de outras formas de arte e as transforma em produtos um pouco mais próximos de nossos ideais de civilidade e consumo familiar.

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Hawkeye, ou Gavião Arqueiro, em sua versão sem visão

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