Guilherme Moraes
Sempre muito aguardado pelos críticos e cinéfilos, o novo filme do consagrado diretor David Cronenberg, O Senhor dos Mortos, chegou na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo dividindo opiniões, como parte da seção Perspectiva Internacional. O longa já se tornou o clássico ‘ame ou odeie’ pela frieza mórbida que o canadense adotou, além de conter uma narrativa confusa e, ao mesmo tempo, cômica. Ainda que esses pontos possam soar mal, o idealizador consegue utilizá-los de maneira interessante em seu conto sobre si mesmo. Cronenberg fala sobre o luto da sua esposa e abraça sua fama de cineasta mórbido e esquisito por seus longas de body horror; assim, ele se assume como O Senhor dos Mortos.
De cara, é possível entender a dinâmica que a obra irá propor. O filme começa mostrando o cadáver de uma mulher, com a câmera perpassando os pedaços do corpo e indo parar na boca do personagem Karsh (Vincent Cassel). A morbidez já esperada foi inserida de primeira, para poder analisá-la sobre um humor ácido e taciturno. Logo em seguida, elementos essencialmente sinistros são inseridos, como um cemitério do lado de um restaurante e os túmulos, em que é possível ver o corpo em decomposição. Essa naturalidade com que David Cronenberg lida com a morte torna tudo muito cômico, como se ela fosse parte do seu dia a dia.
Existe uma passagem no filme em que o protagonista coloca um traje em que é possível ver o seu próprio corpo por dentro. Na narrativa, esse objeto é utilizado nos mortos para que seja possível observar o cadáver. No entanto, dentro desse contexto, é como se Cronenberg analisasse a si mesmo e tivesse curiosidade em ver quem ele é. Isso não é algo incomum na vida de um artista. Cineastas como Martin Scorsese, Clint Eastwood e Akira Kurosawa fizeram isso quando emplacaram uma nova fase em suas carreiras, pois já começam a deslumbrar o fim de suas vidas.
A história ainda traz um quê hitchcockiano, muito parecido com Um Corpo Que Cai (1958), ao passo que Karsh busca substituir sua falecida esposa, Becca (Diane Kruger), com a irmã gêmea dela, Terry (também interpretada por Kruger), e descobre que sua companheira, talvez, não seja exatamente quem ele esperava que fosse. É claro que copiar e colar uma história não é difícil. Vários outros filmes já tentaram emular a obra prima de Alfred Hitchcock sem sucesso, mas O Senhor dos Mortos consegue se utilizar de sua trama e criar algo próprio, tornando tudo mais macabro, ao mesmo tempo que é natural, sem utilizar muitos códigos do suspense. Enquanto no clássico do Cinema o protagonista busca em sua amada um ideal romântico, aqui ele se aproxima da substituta à medida que desconstrói a imagem de sua mulher.
Ainda que muitos não gostem da frieza com que tudo é tratado e do conteúdo enxuto que não chega a ser resolvido, o longa desperta o interesse já que, talvez, David Cronenberg esteja vislumbrando a sua própria velhice, tomando consciência de que já não lhe resta muitos filmes, assim como aconteceu com dezenas de outros cineastas. O que fica para gente é acompanhar O Senhor dos Mortos nessa nova fase e esperar que ainda venham muitos outros filmes por aí.