O Poderoso Chefão: ainda uma oferta irrecusável

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Gabriel Leite Ferreira e Nilo Vieira

Segundo Francis Ford Coppola, um termo-chave que defina o tema de suas produções é crucial para seu desenvolvimento – para ele, “sucessão” seria a escolha em relação à sua obra mais celebrada, O Poderoso Chefão (1972). Não há como negar que se trata de uma opção acertada, mas outra palavra parece fazer maior justiça: contradição.

A começar pelos bastidores: ninguém no set acreditava no sucesso do filme, Coppola e Al Pacino estavam sob constante ameaça de demissão (e sequer eram os primeiros nomes na lista para suas funções), Marlon Brando não era desejado para o papel principal e várias partes do longa foram feitas no improviso. Mas é no enredo onde essa dicotomia se manifesta de forma completa. O filme, baseado no best-seller homônimo de Mario Puzo, gira em torno da família Corleone, organização criminosa liderada por Vito Corleone (Marlon Brando), o “padrinho”, com auxílio de seus filhos e comparsas. Essa configuração é o grande diferencial de O Poderoso Chefão se comparado a outros filmes de gangsteres: crime e família andam lado a lado, quando não se misturam, o que confere um tom respeitável aos envolvidos e camufla seu falso moralismo.

A cena inicial é um belo exemplo dessa dualidade contraditória. O Don recebe diversos amigos em busca de “favores”, uma tradição siciliana, enquanto ocorre a festa de casamento de sua filha. São pedidos escusos, que Vito acata com uma única condição: a amizade sincera, espécie de garantia de que terá a quem recorrer quando precisar de certos favores no futuro. No fundo, é somente uma troca de interesses no submundo incrementada com um sentimento de lealdade incomum em outras empreitadas do gênero. No dia da gravação, Brando encontrou um gato abandonado e improvisou com ele na cena, aumentando ainda mais a ternura do Don Corleone – ao passo em que só sua dicção seca impõe um tom sombrio em qualquer fala.

Contudo, é incorreto dizer que O Poderoso Chefão é somente sobre o patriarca da família Corleone. Apesar de dar vida a um dos personagens mais icônicos de todos os tempos, Brando não é o único protagonista do épico de Coppola. Ele divide esse papel com Al Pacino, que interpreta Michael, o filho mais novo do mafioso. No início da trama, Michael é tratado como um estrangeiro na família. Único Corleone com diploma universitário e herói da Segunda Guerra Mundial, ele se conserva totalmente alheio aos negócios de seus familiares até o momento em que seu pai sofre um atentado. Ao se ver obrigado a tomar partido, a princípio pela família, ele passa por uma verdadeira metamorfose em um dos mais complexos (e completos) desenvolvimentos de personagem do cinema, retratado com excelência por Pacino. Do caçula instruído ao chefe implacável, do heroi incontestável ao vilão temido pela esposa; eis a sucessão mencionada por Coppola.

Al Pacino como Michael: o diabo veste terno
Al Pacino como Michael: o diabo veste terno

Tal metamorfose revela o papel primordial que a obra teve na quebra dos estereótipos italianos em Hollywood. Antes do clássico de 1972, italianos eram retratados como os “outros”, os criminosos que manchavam a América – não é por acaso que os protagonistas da série contemporânea Os Sopranos vivem no subúrbio de Nova Jersey, em meio aos famigerados “cidadãos de bem” norte-americanos. Coppola mostrou que o problema não é tão simples assim, já que todos, imigrantes ou não, estão sujeitos a uma estrutura social corrompida. Se um homem instruído como Michael entrou no mundo do crime, foi por falta de oportunidades e pela necessidade de garantir a segurança de sua família. Como a reunião entre os cinco chefes das máfias de Nova York bem resume, tudo são negócios: política, tráfico, jogatinas, fama, assassinatos, família e até mesmo a garantia da vida de alguém.

Aliás, chega a ser curioso o quão atemporal o longa-metragem é. A história se passa nos anos 40 e foi lançada décadas mais tarde, mas tudo permanece atual ainda hoje. Estão lá a repulsa ao comunismo, o racismo escancarado da guerra às drogas, abusos policiais, o machismo agressivo do patriarcado e, acima de tudo, a instabilidade de relações “políticas”. Os piores criminosos são os que vestem terno (que o diga Sollozzo, detestável traficante vivido por Al Lettieri), e nenhuma diplomacia é garantida sem a resposta desejada; um “não” pode custar sua própria cabeça (ou a de seu cavalo favorito).

Essa família é muito unida, e também muito ouriçada
Essa família é muito unida, e também muito ouriçada

A construção de cada personagem é precisa, e o roteiro (feito por Puzo e Coppola) não dá brechas para unilateralidades. O simbolismo mais palpável se dá na morte do Don, brincando carinhosamente com seu neto numa horta, mas imitando um monstro. Michael, apesar da supracitada metamorfose, conserva suas características primordiais: um homem quieto e reservado capaz de qualquer coisa para resguardar seus interesses. Esse arquétipo tem paralelo mais próximo com o protagonista da Trilogia dos Dólares (1964-1966), do italiano Sergio Leone. O “Homem Sem Nome”, interpretado por Clint Eastwood, é mal encarado, fala pouco e só une forças a alguém se isso representar alguma vantagem pessoal. Não há bondade, apenas interesse. Curiosamente, Leone é quem seria influenciado pela trilogia de Coppola anos depois em Era uma vez na América (1984), o que foi apenas o começo da ascensão dos Corleone no imaginário ocidental.

Mas o real destaque de O Poderoso Chefão, com sobras, são os diálogos. Espinha dorsal da obra, pode-se afirmar que ao menos 85% deles forneceram grandes citações para a cultura contemporânea, e não à toa. A entrega das falas não só evidencia as grandes atuações do filme, como também alivia a pior delas: o Luca Brasi do canastrão Lenny Montana (típico valentão com uns parafusos a menos) só não destoa do resto por sua prosa lenta e claudicante condizer perfeitamente com o personagem, bem como os eventuais exageros de Connie Corleone (Talia Shire) tornam-se justificados.

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Além disso, a tensão proporcionada graças aos diálogos serenos realça o quão explosivas são as cenas de ação do filme – o final épico jamais seria o mesmo sem os cortes para o batismo na igreja -, assim como força um jogo de câmeras e iluminação perfeccionista. A colocação da luz sustenta os planos médios e fechados, que por sua vez servem à química entre os atores e suas conversas. O cooperativismo do enredo extravasa para o setor técnico, e tanto esmero acaba por demandar revisões mais atentas. Sempre há algo a se redescobrir em O Poderoso Chefão: a fotografia, por exemplo, é composta de sutilezas quase nuas numa primeira assistida, com figuras religiosas espalhadas em paredes e enquadramentos que parecem conter mensagens cifradas (vide um trecho curtíssimo, no início do encontro entre Luca Brasi e Sollozzo).

Outro aspecto que merece menção é a trilha sonora, assinada pelo experiente italiano Nino Rota. Focada especialmente em arranjos de cordas, a música nunca soa exagerada, ainda que sempre preencha os espaços de maneira grandiosa. A opção em basear boa parte da trilha na repetição do tema principal, tocado em tempos e instrumentações diferentes, transparece segurança e a sensação de que, apesar das mudanças, a essência permanece a mesma. Não poderia ser mais condizente com o filme.

Com a união irretocável de tantos elementos, a recepção só poderia ter sido calorosa. O Poderoso Chefão conquistou 5 Globos de Ouro, recorde superado apenas recentemente por La La Land, e 3 Oscar – melhor filme, melhor roteiro adaptado e melhor ator, para Marlon Brando. A cerimônia do Oscar foi especialmente conturbada para o último: Brando recusou a estatueta em protesto à representação dos nativos americanos em Hollywood, enviando a ativista Sacheen Littlefeather em seu lugar para discursar sobre a questão. Em contrapartida, naquele mesmo ano ele estrelou O Último Tango em Paris, alvo de polêmicas por conta de uma infame cena que não estava no script. Novamente, as contradições humanas, agora na vida real.

Premiações à parte, o efeito de O Poderoso Chefão ultrapassou a cultura pop e se entranhou no imaginário social. De acordo com um estudo conduzido de 1996 a 2001 pelo Instituto Italiano da América, a produção de filmes envolvendo criminosos italianos explodiu após o primeiro filme da trilogia, fato consolidado com O Poderoso Chefão 2, sequência de 1974 igualmente aclamada – ambos os filmes permanecem até hoje entre os mais bem avaliados da história, por crítica e fãs. Nem mesmo os próprios mafiosos ficaram incólumes. O termo “padrinho”, criado por Puzo para designar o chefe da máfia, por exemplo, foi adotado por famílias reais.

Nada tão inesperado, vide o realismo com que Coppola retrata os personagens e os meandros da trama, nada menos que um retrato certeiro do jogo de poderes inerente à sociedade. E é por isso que O Poderoso Chefão mantém-se uma pedra fundamental da cultura pop há 45 anos. Parafraseando uma das falas mais icônicas do Don Corleone, uma oferta irrecusável para nós, espectadores.

A única reação possível com quem diz não gostar do filme
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