Enzo Caramori
‘‘Soy un amasamiento, sou um ato de juntar e unir que não apenas produz uma criatura tanto da luz como da escuridão, mas também uma criatura que questiona as definições de luz e de escuro e dá-lhes novos significados’’ – Gloria Anzaldúa
Um bando de lobas. Uma rota de amazonas de saltos altos, que sobem e descem um afunilado inferno dantesco, envolvidas por árvores ao mesmo tempo ferozes e acolhedoras a essas travessias noturnas nos labirintos do Parque Sarmiento. As entidades do mundo travesti de O parque das irmãs magníficas (2021) são putas, fadas, mães, demônias, santas e pássaras, numa Córdoba que não está nos mapas nem nos guias turísticos. Tanto nelas quanto no texto coexistem todas as contradições temidas por aqueles que separam o mundo em binarismos: fantasia e realismo; autobiografia e ficção; homem e mulher.
Nessa ficção, ressonante da própria vida da autora – a escritora e atriz Camila Sosa Villada – se desafiam todas as convenções em que o gênero, social e literário, se funda. Ao referenciar a época em que ela mesma era uma trabalhadora do sexo, enquanto fazia faculdade de Comunicação Social em Córdoba, Sosa Villada busca resgatar os laços que foram deixados para trás ao consolidar-se enquanto uma artista das telas e dos palcos argentinos.
Em seu fluxo de memórias, em que a realidade e a fantasia se misturam no registro da natureza mais íntima da travestilidade, se difundem novas éticas de comunidade a essas mulheres. Para elas, viver é habitar esses espaços comuns de cuidado, como na rosa morada de Tia Encarna, a matrona dessa família de laços não sanguíneos, que carrega em seu corpo mais de um centenário de dores, resistências e alegrias. Para sobreviverem ao massacre de suas existências, as garotas do Parque Sarmiento se defendem com ferocidade, mas, além disso, dispõem dos poderes da magia contida no devir travesti.
“Sou uma prostituta que anda pelas ruas de noite, enquanto as mulheres de minha idade dormem nas suas camas. Caminho pela rua, incluída nos planos da violência, mas também nos planos do desejo.”
Contando com lobiscates, uma personagem que vira um pássaro, homens sem cabeça voltados da guerra e uma casa com vida própria, poderia facilmente se pensar que O parque das irmãs magníficas é mais um exemplo literário do realismo fantástico latino-americano. No entanto, o romance de Sosa Villada é um registro emblemático que nega ser encaixado nos nichos da representação realista ou da literatura surreal. Sua potência em imaginar essas histórias, para além das estatísticas que atravessam mulheres travestis, está na restituição de um deslumbramento a identidades tão atravessadas pelos discursos aniquiladores do Estado, que limitaram o direito de pensar o gênero com um misticismo perdido das tradições locais.
O livro consegue unir sem esforços a brutalidade ao encanto em um texto caleidoscópico, enquadrando perfeitamente as experiências que, assim como suas personagens nas rondas da prostituição, toma os espaços de assalto – tanto da Literatura quanto das ruas escuras da noite de Córdoba. A maneira que esse bárbaro conto de fadas é tecido, com euforia e crueza, busca negar retratos eufemizados da feminilidade. Ao narrar, com imensa poesia, sobre a glória da amamentação trans, sobre as marcas dos corpos construídos por implantes de óleo industrial e sobre a vivência de mulheres grávidas inseridas nos ciclos do trabalho sexual, a escritora faz uma ação direta de combate.
Camila Sosa Villada é uma autodeclarada bárbara perante os parâmetros formais da composição literária. No livro, a escrita é uma performance do terror que atravessa a própria biografia da atriz. Assim, em O parque das irmãs magníficas, a relação com o corpo é intrínseca, já que a composição literária existe, para a autora, como uma forma de tomar de volta a si tudo o que lhe foi arrancado pelas violências em que fora mergulhada desde a infância até a vida adulta. De certa forma, o enredo, ao abranger inúmeros ritos de amadurecimento e as transmutações pelas quais as personagens são acometidas, carrega as nuances do que seria um alucinado romance de formação, sustentado em saltos altos e cílios postiços.
Para contar suas histórias, Camila Sosa Villada clama, ao mesmo tempo, por si mesma e por outras mulheres que também percebem a Arte enquanto uma relação preenchida de fé. No seu primeiro livro, La novia de Sandro, um apanhado de poemas antes publicados em um blog, ecoa a delicadeza de Wisława Szymborksa e o erotismo de Marguerite Duras. Em O Parque, é Carson McCullers que se remonta no registro do cotidiano de sujeitos marginalizados, pontuado por momentos breves de beleza. Já no seu mais recente livro de contos, Soy una tonta por quererte, Billie Holiday é a metáfora perfeita aos modelos de transgressão feminina seguidos por sua expressão, que também reflete o brilho da poesia de Pedro Lemebel.
“Com a cara tornada máscara, a mais bela de todas as máscaras, esses traços travestis mais reais que nossos próprios traços, concebidos para outro mundo, um mundo melhor, onde poder ser essa máscara.”
“A dor de uma era a dor de todas”. Na visão trans/travesti, que é a espinha dorsal de sua liricidade, não existe um eu dissociado do nós. Assim como Duras, que aciona em seus textos uma memória-mundo e visualiza o sentimento individual como algo costurado à experiência coletiva, a diluição da fronteira entre o público e o privado abre novas possibilidades de existência nas poucas páginas dessa narrativa. As mulheres de Las malas – título original de O parque – são descritas como um único organismo, cada uma como um conjunto de células de um estranho tipo de vida, no qual ecoam as vozes daquelas que não tiveram o direito de gritar.
O parque das irmãs magníficas não é realista, nem é fantasia. É maleável, em construção, um acelerador de partículas. É uma história que constitui uma nova forma de resistência que reivindica, no espaço da Literatura, vivências sempre catalogadas como não dignas de serem lidas e representadas, mas que sempre persistiram diante de todas as adversidades da violência social. Se a escrita é uma lente usada para se ver o mundo, o livro de Camila Sosa Villada solta um imperativo: o mundo deve ser conhecido pelas lentes travestis.