O Mal Não Existe coloca a natureza como uma presença que pode ser destrutiva para aqueles que a profanam

Aviso: o texto contém spoilers.

Texto alternativo: Ao fundo há um rio congelado. No centro da foto há uma parte descongelada desse rio que reflete a imagem de algumas árvores. Mais próximo da câmera está o personagem Takumi, agachado, de costas para a câmera e olhando o rio.
Em 2022, Ryusuke Hamaguchi levou o Oscar de Melhor Filme Internacional por Drive My Car (Foto: NEOPA)

Guilherme Moraes

Depois de lançar duas obras-primas, Roda do Destino (2021) e Drive My Car (2021), Ryusuke Hamaguchi retorna com O Mal Não Existe, ou melhor, Aku Wa Sonzai Shina, no original. O filme conta a história de um vilarejo que vive em harmonia com a natureza até a chegada de uma empresa, que pretende fazer um camping em meio a floresta, o que ocasionaria em alguns problemas ambientais e afetaria a vida de todas as pessoas locais.

A obra começa ao melhor estilo Hamaguchi, com um plano alongado e contemplativo, observando a beleza da natureza e imergindo o espectador com apenas uma cena; ao adentrarmos, não poderemos sair mais até o final da fita e, quando sairmos, não seremos os mesmos. Na cena seguinte, o diretor mantém essa mesma ‘pegada’ mas, agora, coloca o protagonista fazendo atividades simples, como cortar madeira e pegar água no rio, porém, o alongamento dos planos traz uma valorização desses atos, como se ali houvesse equilíbrio entre o homem e a natureza, e ele a respeitasse, pegando apenas o que lhe é oferecido.

No entanto, essa harmonia é quebrada com a chegada do projeto de glamping, que não visa proteger o meio ambiente e, ainda por cima, irá prejudicar os habitantes do vilarejo. Nesse momento, o filme começa a mostrar suas críticas ao capitalismo – expondo como há um descaso com as vidas humanas e o meio natural – por meio da justificativa do lucro, porém, os locais não estão realmente interessados em ganhar mais, pois já vivem de maneira estável. Em uma conversa banal, Takumi diz que os cervos não oferecem perigo ao humano, a não ser que ele tenha sido baleado, e é interessante assistir como o meio reage quando o homem tenta tirar à força aquilo que não lhe é dado.

À esquerda Mayuzumi está sentada com uma blusa clara e um prato com comida e um copo na sua frente. A direita Takahashi está com uma blusa azul escura e com um prato de comida e um copo na sua frente. Ambos estão de frente para a câmera.
Ryuji Kosaka faz a sua estreia como ator nos cinemas com o longa (Foto: NEOPA)

Se, em Drive My Car, Ryusuke Hamaguchi utilizou a natureza para potencializar a dramaticidade da catarse final – a neve que traz o vazio e o frio –, aqui, ele faz diferente, tornando o meio ambiente em uma presença que pode ser sentida a todo momento, trazendo consigo uma sensação de hostilidade. A maneira voyeurística de como a câmera se posiciona, reforça a impressão de impotência perante o que está ocorrendo, seja a debilidade em evitar a chegada da empresa no local ou em se defender da natureza; é como se o filme nos mostrasse que somos pequenos perto dessas forças e que servimos apenas aos seus interesses.

Aku Wa Sonzai Shina enfatiza como Takahashi (Ryûji Kosaka) e Mayuzumi (Ayaka Shibutani), os representantes da empresa, têm ideias próprias que, ao entrar em contato com os moradores do vilarejo, passam a contradizer com os interesses da instituição. No entanto, mesmo com opiniões discordantes, eles ainda precisam daquele emprego para sobreviver nesse mundo, portanto, permanecem no trabalho e, dessa vez, tentando fazer uma intermediação de maneira que respeite os interesses dos locais, mas isso não é o suficiente e, no final da obra, eles pagam o preço pela empresa.

Ao fundo uma floresta que está desfocada. Ao centro, Hana está de lado para a câmera, olhando para cima, com seu gorro azul na cabeça e a câmera pegando apenas a parte superior do seu corpo.
“A maldade existe em quase todos os momentos sociais da vida humana” (Foto: NEOPA)

A cena final bizarra com Takumi (Hitoshi Omika) matando Takahashi é de uma construção ímpar, de alguém que realmente sabe o que está fazendo. O ‘faz-tudo’ da cidade olha para o cervo baleado que o olha de volta; o animal representa a natureza e a bala a destruição. O cervo pune ele, atacando sua filha Hana (Ryô Nishikawa), por permitir que o homem urbano se aproximasse demais e não afastasse as empresas daquele lugar. Por fim, ele mata Takahashi, como forma de proteção ao meio, se tornando uma extensão da própria natureza, personificando-a.

Os últimos minutos ainda deixam uma dúvida quanto a sobrevivência de Hana, que é levada para fora da floresta no colo do seu pai, com os olhos fechados e ferida. Será que ela realmente morreu como punição? Ou será que aquilo foi apenas um lembrete para que Takumi fizesse o que precisava ser feito? Hamaguchi deixa essas questões para nós mesmos interpretarmos. Nos primeiros planos, o diretor filma olhando de baixo para cima a floresta esbranquiçada de neve, clara e bela. Em paralelo a esse começo, o final fecha com esse mesmo plano, só que a partir da perspectiva de Takahashi, agora, o ambiente é escuro e ameaçador, com os galhos se fechando como se fossem uma teia, tornando o ambiente claustrofóbico, muito parecido com a Bruxa de Blair de 1999.

Em O mal não existe, Ryusuke Hamaguchi traça a relação do humano com o mundo natural; apesar do final violento, o próprio diretor disse para o Diário de Notícias que o nome O Mal Não Existe se dá por causa da natureza, pois ele não vê maldade nela. O que se pode entender de tudo isso é que, apesar do encerramento trágico, o meio estava apenas se protegendo, assim como os desastres naturais são apenas consequências da destruição humana. É através dessas figuras e representações que o japonês mostra desprezo ao sistema capitalista e faz uma ode à natureza que é harmoniosa, bela e, se precisar, violenta.

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