Rafael Gonçalo
Quando, em meados da década de 1950, a produtora de Cinema japonesa Shochiku (fundada em 1895) reuniu seus jovens diretores e roteiristas, como Nagisa Oshima (O Império dos Sentidos), Yoshishige Yoshida (Eros + Massacre) e Masahiro Shinoda (Duplo Suicídio em Amijima), e deu-lhes a missão de reavivar o interesse do público nos filmes da empresa, mal poderia imaginar que a sua empreitada comercial abriria uma caixa de Pandora. A Nouvelle Vague Japonesa (ou Nūberu bāgu) foi um movimento orgânico de cineastas dentro e fora do sistema de estúdios, entre os anos 50 e 70. E de europeu só teve o nome mesmo.
Como viria a dizer o cineasta Susumu Hani (Afurika Monogatari), em entrevista à escritora Lúcia Nagib para seu livro Em Torno da Nouvelle Vague Japonesa, as influências ocidentais foram “uma boa dinamite” para as convenções sociais e artísticas vigentes no Japão da época. Surfando na mesma onda estava também o diretor Toshio Matsumoto, com seu longa de estreia O Funeral das Rosas (1969), título relativamente obscuro, que apenas recentemente foi restaurado e pôde ser apreciado em mais telas. É ele que nos traz aqui hoje.
Nos primeiros minutos da produção, somos levados a pensar que estamos diante de um clássico: fotografia em preto e branco, rostos impecáveis, um clima melodramático iminente… Até que vem o primeiro atropelo. Esse não é um filme comum. Poderíamos, então, tentar dissecá-lo em pelo menos quatro camadas, unidas por uma peça fundamental: Eddie (Eddie… Édipo… Soa familiar?). O personagem é interpretado por Shinnosuke “Pîtâ” Ikehata, que talvez você se lembre como o bobo da corte de Ran (1985), do também diretor japonês Akira Kurosawa. Despretensiosamente, o ator entrega uma atuação tão fluida quanto a sua própria identidade.
Vamos às camadas. A primeira e mais evidente é o melodrama: o jogo de intriga entre Eddie, a “mama-san” Leda (Osamu Ogasawara) e o amante de ambas, Jimi (Yoshiji Jo), o único ator profissional do elenco que não deixa nada a desejar aos noveleiros (o autor deste texto incluso). Como descobriremos mais tarde, a relação da protagonista com sua mãe (Emiko Azuma, numa interpretação digna de Hereditário) é a espinha dorsal da história, e compõe a segunda e mais assustadora camada de O Funeral das Rosas. Está esquentando.
O pequeno clube de desajustados do qual Eddie faz parte é a terceira camada da obra, deixando evidente a revolução comportamental que os jovens daquela geração pós-Segunda Guerra estavam promovendo na sociedade japonesa. No plano experimental, temos uma quarta camada, composta por frames estáticos, imagens em movimento, texto escrito, entrevistas com o elenco e até cenas de bastidores, nos lembrando que, no final das contas, trata-se de um filme. O emprego de um elenco 99% não-treinado rompe com a quarta parede da ficção e nos faz questionar se estaríamos assistindo a um documentário.
Vale ressaltar que essas camadas não estão dispostas em ordem cronológica e você pode, encaixar as peças parecidas na sua cabeça ou simplesmente deixar a vida te levar. De qualquer jeito, você chegará em algum lugar. O Funeral das Rosas triunfa ao fazer mil questionamentos por minuto: ele é, por excelência, um filme que veio para confundir, não só por estar constantemente nos bombardeando de informações, mas também porque o nosso olhar está carregado de (pré)conceitos sem aplicação aqui.
O cinema queer japonês difere do que estamos acostumados a assistir enquanto espectadores brasileiros e ocidentais, a nível quase molecular. O que nos separa não é só distância física. Os bares gays (gei bā) de Tokyo, ponto de encontro entre homens e os gay boys (gei bōi) que lá estão para servi-los e entretê-los, são o pano de fundo. Tudo isso, no melhor estilo das casas de chá japonesas e suas geishas, eventualmente prestando serviços como acompanhantes sociais e sexuais, prática muito frequente na época.
Essa mesma influência americana que trouxe a guerra, acompanhou novas noções sobre sexualidade e gênero, dois aspectos que culturalmente andavam separados no país. Na verdade, o que estamos vendo na tela é um choque geracional entre a figura da onnagata (papel feminino no teatro kabuki, interpretado por homens) – representada por Leda -, e uma nova manifestação da performance de gênero, nascida das influências ocidentais – o gei bōi, representado por Eddie.
Não é só essa disputa que fica evidente: há também o incômodo de um Japão antes patriota, mas agora fortemente ocidentalizado, que não se reconhece mais no espelho. Aqui, um destaque para a cena de sexo entre Eddie e um soldado norte-americano: além de um primor fotográfico e sensual, o momento revela as diferenças inegociáveis entre os dois. A todo momento essas peças tentam se juntar, mesmo quando parece não haver sentido entre elas, ficando a impressão de que, ao piscar os olhos, algo de importante se perdeu.
O tom bastante experimental e amador pode afastar alguns espectadores, os acostumados com uma história mais linear e polida nesse sentido, o que pode ser o “defeito” de O Funeral das Rosas. Pode-se apenas imaginar o susto que a primeira exibição do filme causou, dificilmente o público havia visto algo parecido e talvez nunca mais viu. Amarrando tudo que se confundia profundamente até aquele momento, como se um trauma na mente do protagonista acabasse de ser resolvido, o último ato da obra revela a natureza fatal da trama.
O brilhantismo de Matsumoto está em devorar a obra de Sófocles e a vomitar na cara do espectador em forma de espetáculo queer homicida e pornográfico, ao mesmo tempo que não se propõe a ser um estudo de personagem. O que interessa aqui é o choque, como bem explica a frase do cineasta lituano Jonas Mekas, proferida por Guevara (Toyosaburo Uchiyama) em uma cena que retrata Eddie e seus amigos assistindo a um filme experimental. “Todas as definições de Cinema foram apagadas”.
O Funeral das Rosas utiliza sexo, violência urbana e as transformações no imaginário japonês do século XX, elementos que consagraram a Nouvelle Vague no país, de uma forma única e transgressora, ao permitir que um grupo de personagens marginais se apoderem da narrativa, como se eles e o próprio diretor também experimentassem a linguagem audiovisual. Ele não se reduz a pecha de filme queer ou documental sobre a vida dos homossexuais e transgêneros nos subúrbios de Tokyo, e rejeita nossa vontade de enxergar com nossos próprios olhos. No alto de seus 53 anos, O Funeral das Rosas não é apenas mais um título parte de um movimento, mas é ponto de virada na história do Cinema. Prossiga por sua conta e risco!