Aryadne Xavier
Fabrício Soares, mais conhecido como FBC, já trilhava seu caminho na Música há um longo tempo quando seus versos viraram sucesso nacional, no álbum BAILE, parceria com o produtor VHOOR. Tendo como carro chefe as canções Se Tá Solteira e De Kenner, os maiores triunfos do disco, o conjunto direciona o ouvinte diretamente para o passado ao se utilizarem de batidas que ecoam o Furacão 2000 e o funk brasileiro dos anos 1990, mesclando a nostalgia sonora com versos muito bem estruturados e performados. Após essa explosão, não é de se assustar que alguma expectativa sobre um novo projeto existisse. Em 2023, dez anos depois de seu primeiro EP intitulado C.A.O.S, o padrim retorna com um de seus trabalhos mais potentes e que reafirma seu nome entre os maiores artistas brasileiros da atualidade.
Em O Amor, o Perdão e a Tecnologia Irão nos Levar para Outro Planeta, o artista faz um caminho no mínimo inusitado: em uma era onde quanto mais passível de viralizar no TikTok melhor o seu lançamento será, FBC mira em Jorge Ben Jor e aposta em um respiro no meio de tanta informação. O que parecia ser andar na contramão para muitos produtores, foi a maneira que o autor encontrou de ser fiel a como enxerga sua Arte e como quer transmitir suas mensagens nos dias atuais – e, se vier a viralizar, foi consequência não planejada. Como o próprio já assumiu em recentes entrevistas, não se prender a um único nicho tem sido o guia dessa nova fase de seu trabalho, agora já muito mais amadurecido.
A abertura com MADRUGADA MALDITA já anuncia o tom do que viria a seguir: uma viagem espacial pela disco music. A melhor comparação para compreender a lógica do álbum pode ser entender cada faixa como uma jornada entre uma estação e a próxima, cada uma com seu próprio começo, meio e fim. Nesse primeiro bloco, o registro se mostra extremamente dançante, mesclando com facilidade rimas, referências literárias, analogias entre os efeitos do amor e de substâncias ilícitas e um solo fenomenal de saxofone. Mesmo tendo batidas que realmente cativam (e, por isso, também é indispensável ouvir o disco 2, que é instrumental), as letras continuam repletas de significados e surpresas a quem se dispõe ouvir com mais atenção. Envolvente e de fácil assimilação, as três primeiras produções já criam terreno para o ouvinte se sentir em casa.
Com O QUE TE FAZ IR PRA OUTRO PLANETA?, a viagem realmente começa, apresentando o questionamento central e introduzindo também a resposta, que esteve no título do álbum o tempo todo. É notável uma inspiração em Ad Astra (2019), filme de James Gray no qual o protagonista viaja a outros planetas enquanto reflete sobre a complexidade das relações humanas. Esses pensamentos se repetem e se reforçam ao longo do disco, tornando permanente no cerne da obra discutir questões inerentes da nossa existência. Da reflexão desse mesmo longa, surgem as faixas LIMITE COMUM e O NOSSO GRANDE PAPEL, nas quais ouvimos o próprio FBC, em uma espécie de gravação distante, dialogando com o ouvinte. A inserção desses áudios falados entre as faixas cantadas contribui com a narração dos dilemas humanos.
Em DILEMA DAS REDES, a questão da proximidade que as redes sociais nos trazem fica em jogo: nessa conversa, estamos realmente conversando ou falando com nós mesmos, com o espelho? Em seus versos, assim como nas músicas ANTISSOCIAL e NÃO ME LIGUE NUNCA MAIS, o relacionamento humano e o amor em sua forma romântica ganham enfoque. As reflexões e reações ao olhar o fim movem os versos que fazem o ouvinte questionar: o que seria o mundo sem amor? Segundo o artista, sem ele nem mesmo é possível se salvar, afinal, o sentimento é um dos três pilares que sustentarão a espécie até outro planeta, em sua proposta de um dia a Terra se tornar inabitável. Para acompanhar a obra, talvez seja necessário um certo esforço do ouvinte, se permitindo sentir e explorar – como um viajante – todas as composições.
A temática, embora bem abordada, teve seu ápice muito por razões da explosão musical que a acompanha. A inspiração para o álbum veio em uma viagem em 2020 para a Europa. Naquela ocasião, FBC mergulhou em playlists de dance music e, desse contato, posteriormente aprofundado, nasce a pesquisa sonora que originou o novo registro. Mesclando elementos de house, disco e soul, o cantor demonstra muita maturidade em composições filosóficas sobre a existência enquanto indivíduo em um coletivo. Com referências diretas de Jorge Ben Jor, o próprio autor afirma que tentou ser 1% do que a lenda da MPB é na Música. Mas não é exagero afirmar que ele tenha alcançado sua meta e ainda ultrapassado.
A derivação de outras músicas, como uma expansão do universo criado em uma composição anterior, ocorre algumas vezes durante as 15 faixas do disco. AHAM e QUAL A CHANCE? falam sobre um relacionamento amoroso, mas cada uma em seu ponto de vista ou, quem sabe, um ponto na linha da história. Com ATMOSFERA, a reflexão talvez chegue na essência de todo o vai e vem de possibilidades para sanar a dúvida central sobre a busca a outro planeta. Aqui, esse novo universo pode existir sem se deslocar geograficamente por milhões de quilômetros, mas sim recuperando a própria humanidade da Terra com o perdão e o amor, sem negar a ciência e a tecnologia.
No aspecto produção, a obra não deixa a desejar em ponto algum. Acompanhado pela dupla Pedro Sena e Ugo Ludovico, FBC passeia pela história da dance music de maneira muito confiante e harmônica. A ideia de unir música após música como um historiador retratando a evolução cronológica dessa vertente torna a experiência de escutar o disco do início ao fim ainda mais encantadora. Além deles, o naipe de trombone, trompete e saxofone, em união com baixo, teclado e guitarra, participa ativamente das faixas, criando uma atmosfera capaz de transportar o ouvinte diretamente para o universo setentista e oitentista. O coral, que preenche algumas das canções e é composto pelas vozes de Aline Magalhães, Sàvio Faschét, Iolanda Souza, Sarah Reis, Fernanda Valadares, dá lugar aos feats com Don L, nilL, Abbot e Pepito, trazendo dinamismo ao disco.
O álbum fecha com DESCULPA, que, mesmo sendo uma palavra tão pequena, chega a ser às vezes mais complexa de externar do que trava-línguas. FBC, após a minuciosa e colaborativa jornada para explorar a mente e os sentimentos humanos, fecha seu novo trabalho reafirmando a importância de perdoar aos outros e a si mesmo. É possível notar o amor, o perdão e a tecnologia, ora separados e ora unificados, em cada um dos títulos.
Mostrando sua capacidade de ir além e se reinventar, FBC destaca ao público geral, após 18 anos de uma carreira muito bem consolidada, como sua criação se expande ativamente. Atingindo top 50 no Spotify Brasil e sendo muito elogiado pela maior parcela dos ouvintes, o artista também oferece uma luz e uma indicação de um caminho: nem todas as músicas precisam ser feitas para durar o tempo de uma trend. Mirando e acertando em cheio, O Amor, o Perdão e a Tecnologia Irão nos Levar para Outro Planeta entrega uma obra rica e completa e, em quase 53 minutos – ou mais, se for do gosto do ouvinte apreciar apenas o fundo musical – somos capazes de ir para outro planeta.