Vitor Soares
A teledramaturgia brasileira, que é instrumento de interesses muito menos difusos do que sua falsa pluralidade pretende demonstrar, tem na ficção sempre os mesmos heróis. A narrativa histórica romântica, que o tempo canonizou no ideário popular, é contada e recontada inúmeras vezes.A “novidade” é a novela das seis da Rede Globo, Novo Mundo, que estreou na última semana. Nela, os eventos de 1808 a 1822 – período colonial brasileiro – são evidenciados e tematizados sob a perspectiva, novamente, das elites dessas terras (e das outras).
A história tem uma premissa simples. Nos anos que antecedem a Independência do Brasil, nos deparamos com um Dom Pedro (Caio Castro), até então príncipe regente, mimado e incorrigível, que espera sua esposa, a arquiduquesa austríaca Leopoldina (Letícia Colin), chegar ao Brasil, após um casamento feito por procuração – acordo entre reinos. O mundo vivia um momento conturbado. O cerco inglês, o florescimento do capitalismo e as ameaças de Napoleão à Coroa Portuguesa mudariam de vez os rumos da história do país.
Na viagem de navio desde a Europa, Leopoldina traz sua professora de português, a inglesa Anna Mill (Isabelle Drummond), que, durante a viagem, vai viver um romance com o ator Joaquim Martinho (Chay Suede). É amor à primeira vista, romantizado de tudo. Os jovens se ardem com versos de Camões.
Como personagens secundários, dentro da narrativa “global”, ainda temos o ambicioso comandante inglês Thomas Johnson (Gabriel Braga Nunes), e o índio criado por brancos, Piatã (Rodrigo Simas), irmão de criação da professora Mill.
Segundo a emissora em seu portal oficial, a partir desses personagens reconheceremos a formação do Brasil:
O público poderá ver como foi construído o famoso jeitinho brasileiro, no que resultaram as influências europeias, africanas e indígenas, a mistura de povos e a formação desta sociedade.
É interessante notar que, segundo essa narrativa, se consideramos logo de cara seus protagonistas, o Brasil é bem menos plural do que a própria Globo, através da abordagem superficial da diversidade em sua programação, costuma pregar.
Não é à toa que rasgam elogios aos espaços (brandos espaços) dados às minorias na grade. A Globo mostra, numa roupagem muitas vezes convincente, alguns aspectos superficiais da cultura popular. Esporadicamente, como se prestasse contas a alguma moralidade quase imperceptível. Mas, no dia a dia, em sua grade ficcional e no hard news, pouco vemos, já que, no primeiro, temos o resgate do heroísmo eurocêntrico e, no segundo, a “questão da carne” toma todo o principal noticiário da emissora. Enquanto isso, no Senado, os trabalhadores voltam ao século XX, ou antes, tendo seus direitos cerceados de forma brutal e silenciosa.
Mas ninguém vai se dar conta, porque na tevê Dom Pedro é ídolo, o maior problema do Brasil é a bilionária empresa fraudulenta que caiu e, veja só, até Maria do Carmo voltou. A novela Senhora do Destino, sucesso em 2004, está de volta às tardes, em Vale a Pena Ver de Novo. Como o povo não vai se animar revendo a inspiradora história de alguém pobre que vence na vida por conta própria, apesar de todos os desafios? É assim que deve ser, não é? Contra tudo e todos: só assim é possível vencer!
Os portugueses, novamente como heróis dos episódios de 1500, representam só isso: “ferida que dói” nos outros “e não se sente” na pele dos vencedores da história; aliás que, para essa parcela da sociedade, os vencedores, a novela deve ser mesmo apenas uma reles história de amor em alto mar.
Além-mar, no Brasil, a trilha sonora de Novo Mundo, assinada pelo produtor musical Sacha Amback, trata de cumprir seu papel dentro da trama, dessa vez heroificando o fútil e desinteressado Dom Pedro. Numa das cenas iniciais, a música epopeica acompanha o príncipe em seu cavalo, enquanto ele, descalço, fugindo das balas do marido de sua amada, passa pelo populacho coadjuvante. Esse último, secundário, esquecido, estendendo lençóis brancos no sol logo cedo.
Fotografia bonita, cenário bonito, enredo grotesco.
Há esplendor, para a Globo, na sinopse que a emissora publicou em seu portal. Assim, eles contam com entusiasmo alguns conflitos da trama:
Na novela, uma mulher que era escrava se envolve com um austríaco afortunado, um índio branco não consegue se adaptar à vida na mata, um branco torna-se índio, um monarca transmite seus ideais através de mensagens anônimas na Imprensa e muito além.
“E muito além”.
A novela da Globo não comete um equívoco inocente; inocente seria falar em equívocos, nesse caso. É essa a história que querem contar, de fato. Novo Mundo é escrita por profissionais gabaritados, de formação acadêmica de primeira no país, cientes das implicações desta narrativa. Thereza Falcão e Alessandro Marson são velhos de casa, mas só agora a dupla teve a oportunidade de assinar sua própria novela; antes, apenas roteirizavam como colaboradores.
O caso é que a Globo resolveu mudar. Segundo Daniel Castro, do Notícias da TV, as próximas novelas do horário das nove terão novas duplas também. No atual elenco de roteiristas, apenas uma mulher é figura antiga: a portuguesa Maria Adelaide Amaral, autora de novelas como Sonho Meu, de 1993, e Anjo Mau, de 1997.
Em dois anos, dez novos autores farão parte do time da emissora. Os figurões aclamados pelos chairmen? Todos fora. Qual seria o objetivo? A audiência das novelas têm caído, é verdade, mas a influência ainda é pujante. Trocar os autores, como disse Silvio de Abreu, o diretor de teledramaturgia da Globo, em entrevista ao UOL, é uma tentativa de salvar algo que há décadas é sucesso, pois “sem novos talentos exercendo o ofício de escrever, o gênero telenovela fatalmente terá seus dias contados”.
Na prática, sabemos que é bem mais complexo do que “ter talento ou não”. A edição é pesada. Os autores de Novo Mundo, em vídeo do GShow no qual apresentam a telenovela, dizem que foi preciso se enquadrar em “requisitos” da Globo para que a sinopse fosse aprovada. Só após muitas adequações a novela ganhou vida.
Sobre a trama de Novo Mundo, não há muito o que esperar. A estreia alcançou 22 pontos de audiência, segundo o Ibope; 4 pontos abaixo da última novela, Sol Nascente. As pretensões podem mudar em vista de mais quedas de audiência, afetando todo esse jogo narrativo ou acabando com ele, como outras vezes aconteceu. No espectro da ganância, ainda há muita margem para o cúmulo.
Talvez o personagem Piatã, único não-branco entre as personagens principais, tenha dito a frase mais simbólica até então: “eu não sei nem de onde eu vim”.
Piatã, índio que não conhece suas raízes, criado por brancos europeus (mais do que isso: criado pela visão europeia) é como o brasileiro que, diariamente, absorve o discurso apaziguador por toda parte, de que a história é bonita e cheia de heróis. O brasileiro não reconhece nos tempos sua essência e sua cultura, porque o herói é sempre o mesmo: branco e a cavalo, de navio e empunhando a espada.
No fim das contas, a história do Brasil, vendida por sua principal emissora de televisão, é mesmo a de um aventureiro inspirado em Jack Sparrow, com uma professora de português inglesa, um rei mimado e seu casamento com uma arquiduquesa austríaca. De fato. Para a Globo e seus interesses, o Brasil é mesmo branco e tem sobrenome europeu.
Quem era Joaquim na história real? Tipo Léo Jaime é D João…
Olá, Clóvis. Apesar do plano de fundo real, alguns personagens como o Joaquim e a Anna foram criados especificamente pelos autores da novela.
Negativo.. Anna é inspirada em Maria Graham, e o episódio em que D Pedro I “censura” o livro dela é uma invenção sem tamanho! Maria Graham publicou esse livro (Journey of a Voyage to Brazil).
Apesar de algumas pisadas de bola grandes, essa novela está sendo MUITO melhor do que qualquer obra de TV ou cinema até hoje, sobre o período monárquico do Brasil.
Estão sendo mostrados os personagens em suas virtudes e limitações, como seres humanos. É justamente com a chegada de Dom João VI ( que NÃO “FUGIU” acovardado de Napolão – este mesmo disse que D João VI foi o único que o fez de bobo), a elevação do Brasil a reino em 1815 (foi aqui que deixamos de ser colônia, e não só em 1822), e a independência em sí.
Portugal cometia o mesmo erro da Espanha, ao tratar diretamente com as províncias, ao invés de lidar com uma administração centralizada da colônia. Se D Pedro I não tivesse escolhido ficar E lutado p/ reprimir as guerras civis (províncias que apoiaram Portugal), nós teríamos nos tornado mais um punhado de republiquetas atrasadas alternando déspotas no poder, como as outras várias oriundas da América Espanhola.
Espero que mostrem tb o 2o reinado, com D Pedro II, maior estadista que este país já viu, sempre apagado da “história do MEC”. É durante o 2o reinado que efetivamente construímos a cultura comum, BRASILEIRA, ao invés da exacerbação das diferenças provinciais.