Adriano Arrigo
Como assistir Mindhunter e não lembrar do discurso da jornalista Rachel Sheherazade sobre o linchamento de um jovem na zona sul do Rio? A nova produção da Netflix, dirigida por David Fincher (Seven, Clube da Luta, e Zodíaco), é uma aula divida em 10 capítulos que explicam o que, para muitos, não parece ser fácil de compreender. Mindhunter dá a luz a temas espinhosos para a segurança social, e mostra como o senso comum do que é um ‘bandido’ é mal compreendido, mesmo entre os profissionais da área.
Holden Ford (Jonathan Groff), um dos protagonistas da série, não está em Mindhunter para manusear ações para proteger bandidos (e muito menos nós do Persona). Mas é o que aparenta nos primeiros episódios da série. Holden é um jovem agente da FBI que trabalha especificamente no departamento de psicologia da agência. Ele é apresentado para nós como (lá vamos com mais um clichê) um ‘cidadão do bem’. Bonito, jovem, inteligente… Holden é um promissor agente padrão do FBI.
E não há um ‘porém’; o jovem é um clichê ambulante mesmo, mas isso não é o seu fator limitante. Ele sabe que o que ensina para os policiais das ruas que lidam diretamente com resolução de conflitos está aquém de todo o conhecimento sobre área. Começa, então, a assistir à algumas aulas em uma universidade para contrastar seus conhecimentos práticos com os conhecimentos acadêmicos.
É muito interessante perceber que o protagonista principal possui dúvidas sobre a sociedade comum a todos que estão fora da área das ciências humanas. Em um bar, troca conversa com outro professor sobre o a degradação da sociedade e ambos, de fato, chegam a conclusões medianas sobre os fatores. Os fatores que englobam a pós-modernidade, para eles, desencadearam em sintomas que denotam em algo maior, como o fim da democracia. E a dúvida persiste. O que levam as pessoas a terem esses sintomas, como assassinatos em massa, atentados desligados a facções e suicídio?
A série, que se passa na década de 70, é um retrato fiel de 2017. Não só pela onda conservadora que abrange o mundo atualmente em respostas a esses sintomas, mas colocando na boca de seus personagens as respostas simplicistas que geralmente é dada para sistemas muito complexos. Não só isso: a produção joga com personagens com características racistas e preconceituosas, e que, obviamente, não são passíveis de serem características de pessoas ‘ruins’ ou mal instruídas, mas são fruto do do senso comum do cidadão de bem.
Holden compreende isso. Ao mesmo tempo em que ele sabe que seus métodos de análise social é limitada (a cena que ele volta do cinema após assistir Um Dia de Cão é excelente), ele não sabe exatamente o que fazer. Assim como nos últimos filmes de Fincher, a série constrói com um ritmo lento, preciso e de emoções contidas as novas escolhas de Holden. A inserção de personagens femininas na série, tanto indiretamente como em posição de destaque, traz veracidade para essa transformação, porque são elas que asseguram as mudanças concretas nos protagonistas.
Esse tema, porém, pode levantar algumas polêmicas entre, novamente, o senso comum. As mulheres da série são extremamente inteligentes, fortes e modernas, parecem vindas do futuro (com a escolha do apartamento em que uma delas vai morar, de fato, isso parece ainda mais evidente). Em destaque, estão a professora Wendy (Anna Torv) e a mestranda em sociologia Debbie (Hannah Gross) que, nos primeiros episódios, já faz par com Holden. “O que você acha da teoria de criminologia de Durkheim?” pergunta Debbie a Holden. A resposta “o que é isso?” mostra o quanto o agente de psicologia criminalística está não só atrás de uma única estudante, mas como seus conhecimentos e o preconceito da agencia o fazem estar afastar de teorias que explicam seu trabalho.
O agente, porém, é humilde e não tem problemas em estar em volta de mulheres inteligentes, mesmo que deixe bem claros seus esteriótipos e preconceitos. Debbie, então, é uma espécie de irrigadora de pensamentos que proporcionam um choque em Holden colocando-o em cheque não só com o seu cargo no FBI, mas consigo mesmo. Todos os seus preceitos são desconstruídos como uma eficaz psicoterapia.
E aqui está um dos trinfo das série. Mindhunter não se trata exatamente de desvendar crimes. A produção da Netflix é uma espécie de terapia de séries de crime que dominaram a TV no final dos anos 90 e meados dos anos 2000. É um divã dos agentes que passam problemas profundos, mas não sabem como lidar com isso. Os agentes aqui não são implacáveis e necessitam de uma terapia tanto quanto os demônios da série.
Mas mesmo que a analise feita de Mindhunter fosse restrito a uma série criminal, esta ainda se sairia com grande êxito. Os subenredos que tratam de desvendar crimes pelas cidades que Holden e seu parceiro, Bill Tench (Holt McCallany), passam para treinar os policiais locais são extremamente interessantes e enriquecedoras para o enredo. É uma analogia perfeita de um sistema de pesquisa acadêmico: possui métodos, aplicações e, por fim, resultados. Holden e Bill aplicam os resultados levantados por suas entrevistas com vários assassinos em série, entregam para Wendy para processá-los e, enfim, aplicar aos crimes locais.
Há, então, um equilíbrio perfeito entre as entrevistas feitas pela dupla com a análise do self dos protagonistas da série. Isso, inclusive, coloca o título do seriado em jogo. Não seria também Mindhunter a caça pela mente dos próprios protagonistas? Afinal, Holden e Bill partem para uma jornada de autodescoberta, conforme vão entrevistando os assassinos. E que entrevistas. Alguns episódios são somente conversa frente a frente da dupla com os detentos. E são nesses momentos que a mente de quem assiste também é colocada em cheque e as emoções de Fincher são reveladas.
Em Mindhunter, não há sangue, morte e cenas cruas como aquela em Zodíaco (2007) no qual assassino esfaqueia um homem no parque sob a visão de sua esposa amarrada. O som da facada soa mais na série como as confissões e explicações de cada crime. E nesse momento também entendemos um pouco mais da complexidade da mente humana, e como os fatores sociais influenciam suas ações, mas não são decisórias.
Na análise desses momentos posteriormente, há diversos clarões mentais tanto para os personagens quanto para os espectadores que não estão familiarizados com as ciências humanas. Isso cria uma certa empatia pelos assassinos (estou quase ouvindo um “tá com dó, leva pra casa”). Mas Holden e Bill são frios em suas analises e colocam numa balança a teoria que eles ouvem de Wendy para contrapor com suas experiencias nas ruas. Afinal, como colocar em prática a teoria de Durkheim que diz que toda desvia de comportamento é um desafio a repressão normatizada do Estado a um detento que assassinou seis adolescentes e fez sexo com os cadáveres (caso real)? Como, ao final, entrevistá-los e se sentir bem perante tais atos?
É comum ao universo de Fincher tratar tais atrocidades. Em 1995, no longa Seven – Os Sete Crimes Capitais, vimos um assassino sem misericórdia como aqueles que cometiam os sete pecados capitais. Embora a premissa soe um tanto batida hoje, Mindhunter aparece como um respiro nas séries e encabeça uma das melhores produções do ano. Enxuta e instigante, a produção não está online para julgar os erros dos ‘bandidos’, mas tenta colocá-los sobre uma perspectiva psicossociológica para, enfim, aplicar à prática de agentes policiais. Holden não quer substituir o trabalho dos agentes policiais por acadêmicos, e os acadêmicos não querem trocar seus métodos científicos por ação policial. Mas fica óbvio que podemos trocar o senso comum da sociedade.