Leonardo Teixeira
“Troquei fama por amor sem pensar duas vezes”, é como Madonna abre os trabalhos aqui. Anos-luz longe da material girl que se tornara onipresente nas rádios na década anterior, em 1998 a Rainha do Pop não se contentava apenas com o êxito comercial. Aventuras da cantora por terrenos desconhecidos, como o teatro musical e gêneros que emergiam do underground, indicavam que seu tato artístico amadurecia.
Mas as mudanças na vida de Madonna iam muito além da renovação na carreira. Ray of Light (1998) cava fundo a alma lavada da artista, que, depois de se reinventar mil vezes, estava pronta para assumir sua forma mais complexa.
Os anos 90 não foram dos mais fáceis para Madge. A vanguarda sexual que ela bancou com seu livro de arte erótica SEX foi um escândalo pesado demais. Pela primeira vez, o público não confiou cegamente nos instintos da cantora. As vendas seguiram bem, mas a ousadia de Madonna já era motivo para um olhar desaprovador dos mais conservadores, dos quais os Estados Unidos são repletos.
Limpeza de imagem era a palavra-chave. Mais do que ninguém, Madonna sabia o que fazer quando o assunto era renovação. Seu trabalho seguinte, o impecável Bedtime Stories (1994), veio menos agressivo, porém taxativo: absolutamente zero arrependimentos pelas polêmicas do passado.
Em 1996, uma atuação até que elogiada (para os padrões madonnísticos) na adaptação cinematográfica do musical Evita veio com direito a apresentação e prêmio na cerimônia do Oscar daquele ano. Ainda, a parceria na bem-sucedida faixa “I Want You”, com o Massive Attack — banda britânica que ajudou a içar o trip hop para o mainstream —, sinalizava que a Rainha seguia explorando terrenos novos. No mesmo ano, outra novidade: o nascimento de sua primeira filha, Lourdes Maria Ciccone Leon.
Todos os grandes álbuns de Madonna chegavam sempre justificados por mudanças na vida da cantora. Casamento, divórcio, desconforto político… Em Ray of Light, a motivação não estaciona simplesmente na maternidade, mas abraça exatamente essa troca simbólica já citada, entre fama e amor, presente na faixa de abertura, “Drowned World/Substitute For Love”, que inaugura a reflexão.
Aqui temos a intérprete de “Hung Up” cheia de plenitude consigo mesma. Se em 1997, a islandesa Björk encontrou porto seguro emocional em seu país natal, agora Madge conquistava a mesma dádiva através do amor por sua filha. A faixa descreve um passado solitário, no qual a cantora procurava seu lar nos lugares errados. Agora, longe de relações superficiais, ela submerge o ouvinte em seu novo e renovado estado de espírito.
Atrelada também a novos caminhos religiosos, a renovação espiritual veio com a conversão da Rainha à cabala, vertente filosófica esotérica do judaísmo. A celebração desses preceitos milenares é parte do que dá liga à tracklist, que segue a lógica dogmática de que somos resultado de nossos próprios pensamentos.
Dito e feito: grande parte das composições, como a bossa nova eletrônica “To Have And Not To Hold”, tratam do exorcismo da negatividade que a cantora teve que fazer em sua mente para chegar no estado de êxtase da faixa de abertura ou da canção que dá nome ao álbum.
Outra adição ao novíssimo estilo de vida de Madonna foi a ioga, que também tem forte ligação com as tradições orientais que ela já vinha absorvendo. Inclusive, o interesse da artista por William Orbit — o principal produtor do disco — nasceu durante um de seus treinamentos de ioga, para os quais a música ambiente eletrônica do britânico servia como trilha sonora.
Na união entre espiritualidade e música eletrônica, temos o exercício da dualidade entre passado e futuro nessa nova fase. Além disso, é marcante a referência ao efervescente movimento das raves, festas com mais de 24 horas de duração em que fervia a celebração da religiosidade sem julgamentos e de ritmos como house e techno nos anos 90. É aqui que reside a chave para a entendermos a mágica de Ray of Light.
A urgência das pistas de dança casada com o estado de paz interior tecem um cenário psicodélico que abraça o amor puro e no qual, livre da moralidade, o eu-lírico pode se despir da capa grossa que outrora criara para se proteger. Aceitar esse amor é resistir a todo o julgamento. E é em nome desse amor puro que a caminhada segue na tracklist.
Relacionamentos tóxicos também tiveram que ser amputados. A icônica bruxa de gelo do vídeo de “Frozen”, dirigido por Chris Cunnigham, deseja exatamente exorcizar o mal de um relacionamento gelado e unilateral que, diferente do amor da bebê Lola, não alimenta a alma de Madonna. A força e auto estima necessárias para realizar um ato de amor por si mesma e se livrar do parceiro egoísta são protagonistas nesse clássico.
Apesar de temas de amor e auto estima serem tão universais, Ray of Light é talvez o momento mais pessoal da discografia de Madge, já que a dualidade sonora do novo e do antigo se encaixam com facilidade na nova persona da cantora o momento em que ela se via em 1998. Anos depois, Madonna admitiu que a vida doméstica de mãe a fazia sentir presa. O sentimento que guia o disco era realmente genuíno, mas, sendo um ser humano complexo, ela não o carregou pra sempre.
O pop é cheio dessas. Vira e mexe nos deparamos com álbuns que usam a narrativa de autodescoberta como forma de divulgação. Às vezes eles até vêm autointitulados, para simular ainda mais essa proximidade. No entanto, a exemplos dos últimos lançamentos de Justin Timberlake e Miley Cyrus, essa estratégia nem sempre cumpre o prometido. O chamado “álbum pop pessoal” só é bom quando é espontâneo.
Esse é o caso do sétimo registro de Madonna. Ela sempre discutiu questões como liberdade sexual e emancipação feminina em seus trabalhos. Mas aqui esses temas se espalham nas entranhas do eu-lírico e aparecem nas entrelinhas dos relatos presentes na música. Menos institucional que em momentos como “Express Yourself”, a artista soa totalmente entendida da sua posição e papel nessa dinâmica, rendendo o disco mais feminista de sua carreira.
Curioso como o lugar de conforto de Madge é na supostamente impessoal parafernália eletrônica associada a esse tipo de música. Mas funciona. Diferente de discos menos inspirados, como American Life (2003), o conceito não atropela o conteúdo lírico. Eles se complementam.
No final do século XX, não tinha para ninguém. Madonna era a artista americana mais ousada a ser ouvida nas rádios, exatamente por ela ter muito a perder com apostas mais desafiadoras. Ela passou toda a década de 90 tentando romper com suas sonoridades anteriores. E, no fim das contas, acabou se superando quando nem estava tentando. A coisa só fluiu.
Despretensão pode não ser a palavra certa a ser usada aqui, mas com certeza oferece uma ideia da boa forma da cantora. Em “Mer Girl”, a Rainha foge dos fantasmas do passado e reflete a morte de sua mãe, agora que ela mesma tem uma filha, e surpreende: nunca quis ser a voz de sua geração. Mas acabou sendo. O disco se solidifica no fim do primeiro milênio como a overdose criativa de uma artista que nunca se contentou com o óbvio e sempre soube ler os desejos de seu público.
Ray of Light é um trabalho muito do egoísta. Leonina clássica, Madonna não poderia deixar de exigir toda a atenção para si. O álbum deve ser apreciado sem distrações, preferencialmente com fones de ouvido. O que a Rainha do Pop quer aqui é que nos sintamos submersos nas histórias que ela conta. Inclusive, a presença da água (literal ou poeticamente) é fortíssima. Madge já afirmou em entrevistas que não percebera esse peso na tracklist até a mesma ser concluída.
De certa forma, a influência do elemento faz sentido, já que o registro é o batismo de Madonna em sua nova forma espiritual e na maternidade. Exercitar esse sentimento incondicional pela filha acabou sendo maior prova de amor que Madonna realizou para si mesma.
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