Aviso de gatilho: o texto a seguir trata sobre temas sensíveis como abuso sexual e homofobia.
Guilherme Moraes
Em Má Educação, o diretor Pedro Almodóvar evidencia os maus-tratos que alguns garotos sofrem na Igreja e, nesse quesito, fala com propriedade. A fita deixa clara a hipocrisia dentro de um lugar que se vende como mantenedor dos ‘bons costumes’, mas que, às escondidas, casos de pedofilia já foram registrados. No entanto, apesar do filme prometer ser uma denúncia, ele se torna muito mais do que isso ao longo da trama, adentrando em um conto investigativo ‘hitchcockiano‘ que explora o efeito dos abusos e da marginalização em certos grupos sociais.
Na obra, o cineasta Enrique (Fele Martínez) recebe a visita de Ignacio (Gael García Bernal), seu antigo amigo e primeiro amor que, para ele, aparenta estar muito diferente. O personagem de Bernal aparece com um conto sobre a infância dos dois, interessante na visão do diretor, que decide transformá-lo em longa-metragem. A partir do momento em que o sujeito interpretado por Martínez lê o script, a realidade se mistura com a ficção dentro do próprio filme e a vida de Ignacio começa a ser contada.
Almodóvar ainda utiliza a metalinguagem para explorar mais algumas questões ligadas à narrativa ‘hitchcockiana’. Uma das características de Alfred Hitchcock é a maneira como ele dirige o olhar que será mostrado e, assim. conduz o espectador à onde quiser. Nesse sentido, o espanhol alterna o olhar entre Enrique e Ignacio, presente e passado, confundindo o público entre o que é a realidade e o que não é, e, mesmo dentro da película, não é possível saber o que é fato e o que é ficcional.
No momento em que Enrique volta a ser detentor do olhar, ele busca saber mais sobre o que aconteceu com seu amigo durante esse tempo em que estiveram afastados. É nesse momento que acontece a grande reviravolta, pois, nos é revelado que Ignacio estava morto e que seu irmão Juan havia roubado sua identidade. Essa passagem poderia ser considerada de maneira negativa como típica de uma ‘novela mexicana’ por muitas pessoas, mas, na verdade, revela uma de suas facetas mais ‘hitchcockianas’, se assimilando muito a Um Corpo que Cai (1858).
A dicotomia entre Ignácio – que passa a ser interpretado por Francisco Boira – ,e Enrique escancara a diferença entre quem foi traumatizado pelos abusos e marginalizado por ser quem é, e quem não foi. O primeiro sofreu assédio constante do Padre Manolo (Daniel Giménez), se assumiu uma pessoa trans após sair da Igreja e teve como destino a vida de viciado, dançarino de boate nos lugares mais podres da Espanha e morre sozinho como indigente. Por outro lado, Enrique seguiu sua vida, se tornando um cineasta com uma casa luxuosa e muito dinheiro guardado. Apesar de ser declaradamente homossexual, ele não sofre o mesmo que seu velho amigo, pois o preconceito é maior com quem é trans e pobre, afinal, na época em que o filme se passa, já existia o chamado dinheiro rosa, o que o coloca em uma situação muito mais favorável socialmente do que Ignácio.
Falando sobre a maneira como Pedro Almodóvar trabalha o sexo, é muito interessante que ele não tem pudor algum de mostrar o desejo e a nudez. Há duas cenas que evidenciam o estilo ‘almodovariano’: na primeira, Juan, irmão de Ignácio, interpretando Zahara – persona que assume como dançarino de boate –, dá em cima de Enrique, agora, interpretado por Alberto Ferreiro, de maneira despudorada; na segunda, o cineasta e o ator encaram os corpos um do outro enquanto estão na piscina, e o diretor faz planos muito explícitos desse desejo, fazendo com que a câmera se alterne entre rosto e corpo. Mas além disso, o espanhol faz do sexo e do tesão uma relação de poder. Nesse aspecto, é possível enxergar o padre que explora sua posição e proteção para abusar de Ignacio, no entanto, também é possível ver como o personagem cineasta aproveita a ânsia de Juan de protagonizar o filme, para transar com ele.
Algo muito rico da filmografia de Almodóvar é que ele não torna seus personagens ‘reféns’ de sua sexualidade, ou seja, a sua história, função narrativa e desenvolvimento não se baseiam apenas no fato deles fazerem parte do grupo LGBTQIAPN+ – o que não quer dizer que esse fato é ignorado. Ele entende como as questões histórico-sociais relacionadas à sexualidade dos seus personagens o moldam e influenciam suas escolhas e atitudes. Se olharmos para o Cinema contemporâneo, principalmente o norte-americano, é perceptível como são raros casos de filmes que exploram tão bem a forma como as questões de gênero modelam seus personagens.
Má Educação entrega aquilo que sempre esperamos de Pedro Almodóvar: uma obra irreverente, cheia de desejo, sexualidade, sensualidade e capaz de incomodar. Em certos aspectos, o diretor chega até mesmo a parecer com a Madonna, mas sem toda a genialidade da cantora. É irônico que, pouco tempo após o lançamento do longa, a Arte tornara-se cada vez mais puritana e higienizada, principalmente se olharmos para os blockbusters atuais. No entanto, é sempre bom poder voltar a esses artistas e ver que, apesar do amadurecimento de suas obras, sua veia rebelde continua a mesma.