Jho Brunhara
“Não deve existir nada melhor que isso”, Florence Welch canta em South London Forever, faixa presente no seu álbum de 2018, High as Hope. A música distante temporalmente de seu primeiro disco não poderia estar mais próxima a nível emocional. Em um relato nostálgico e fiel a sua conturbada adolescência e início da juventude no sul de Londres, a cantora britânica resgata na canção todos os sentimentos de euforia, impulsividade e frustração que a moldaram no início da carreira e possibilitaram a existência de seu mágico e caótico debut, Lungs. Dez anos depois de vir ao mundo, o primeiro trabalho de Welch ainda é um grande exemplo de sua capacidade de transformar a desordem de um coração em uma obra de arte.
Escrever esse texto foi um processo complicado. E acho que não há melhor forma de começá-lo do que declarando isso. Um amigo meu diz que é muito difícil escrever sobre algo que gostamos muito, e eu concordo: realmente é. Talvez tenha sido culpa do meu inconsciente o quanto procrastinei para estar aqui, colocando minhas palavras para fora. E coincidentemente – ou não –, faz com que esses parágrafos sejam mais ainda pertencentes ao que o disco representa.
Lungs nasceu das composições de uma Florence jovem e extremamente inconsequente. Seja pelo abuso de bebidas alcoólicas ou drogas, ou os desdobramentos disso que causaram o afastamento familiar e suas aventuras relatadas nas músicas. Mas uma coisa é certa, esse é um álbum extremamente poderoso.
É comum entre os admiradores da banda, os mais distantes ou os que dariam o próprio sangue pela artista, um consenso: ouvir as músicas de Florence + The Machine é uma experiência. Quase como entrar numa igreja e estar imerso em um culto, onde as palavras e a melodia se fundem através da poesia metafórica e das harpas e tambores, em uma oração. Não um culto moral ou inquisidor, pelo contrário, um culto libertador.
Dog Days Are Over inicia o LP e declara: os dias de cão acabaram. Até hoje esse é um momento catártico nos shows da banda, em que toda a energia do público – e da cantora – é liberada de uma vez só, como se todos os problemas do mundo deixassem de existir por um breve minuto. Mas eles continuam em nós de alguma forma, porque são parte de quem somos, e Florence faz questão de lembrar a si própria disso muitas vezes.
Rabbit Heart (Raise It Up), Drumming Song e You’ve Got The Love compartilham dessa mesma energia libertadora, ainda que continuem carregando toda a carga emocional de uma vida. Vocais doces como o céu e quentes como o inferno ecoam por quase todas as faixas, se assemelhando a cantos celtas em certos momentos, ou até mesmo óperas. O instrumental orgânico, através de instrumentos reais dá o potencial de crescimento e imersão total de quem ouve.
The saints can’t help me now, the ropes have been unbound
I hunt for you with bloody feet across the hallowed ground
A adolescência e juventude de Welch, parte caótica sendo mais proeminente, foram o que moldaram a artista e suas inspirações para criar. Seja o amor obsessivo e destrutivo na intensa Howl, a devoção e a frustração em Cosmic Love, ou o conforto na bebida em Hurricane Drunk. O passeio de Lungs entre os dilemas da vida terrena e seus dualismos – o amor e o sofrimento; a paz e a angústia; a ordem e o caos; a vida e a morte, como em My Boy Build Coffins – transformam ele em mais que uma série de desabafos e expressões da vida de Florence, mas sim uma parte de sua alma desprendida e entregue em suas canções.
Crescer entre problemas e sustentar um coração perturbado não é raro. Talvez todos tenhamos nossas questões, traumas e eventos que não foram devidamente superados, mas aqui eles ganham vida, e têm sua chance de serem transformados em algo novo, com seu devido brilho.
A maior magia pagã da bruxa britânica é ser capaz de extrair a mais bela arte de suas verdades, de seus conflitos internos e de sua dor. Como a faixa Between Two Lungs que indiretamente dá nome ao álbum, os seres humanos estão em constante busca pelo amor. Nós precisamos dele para preencher a angústia de nossas almas, para nos sentirmos seguros no mar de dúvidas e confrontos. E Florence exerce esse ato com maestria, muito além de seu lirismo sincero, da grandiloquência de sua voz e das produções violentas de suas faixas.
Lungs foi realmente o pulmão de sua carreira, em que um sopro de peito cheio foi capaz de levar seu talento para o mundo todo, e colocar aquela jovem inconsequente quase na posição de uma líder religiosa. Ouviremos suas orações, sentiremos suas palavras, e a salvação – o fim dos dias de cão – sempre estará em reconhecer que até nossas partes mais obscuras podem dar lugar a sentimentos novos e transformados.
I took the stars from our eyes, and then I made a map
And knew that somehow I could find my way back
Then I heard your heart beating, you were in the darkness too
So I stayed in the darkness with you
South London Forever não estava errada: talvez realmente não exista nada melhor que isso. Mas talvez o que esse trecho realmente quer dizer é que não exista fonte de inspiração melhor que viver, e Welch sabe muito bem. Como em seu livro lançado ano passado, Useless Magic: Lyrics and Poetry, repleto de letras, poemas, ilustrações da artista e anotações, a vida é sim feita de grandes momentos, mas é principalmente construída pelos pequenos.
“Não é um sonho estar vivo?”, “tanta beleza para apreciar”, essas e outras citações dividem espaço com lamentos e dúvidas. E como muito bem lembrado em No Choir, do álbum High as Hope: “é difícil escrever sobre estar feliz, pois por tudo que entendo percebo que a felicidade é um assunto extremamente monótono”.
O debut da banda emerge como uma peça única: uma atmosfera esotérica, mística, quase como se cada canção fosse um feitiço lançado sobre os ouvintes, envolvendo cada um pelo amor. Lungs é de forma obscuro, mas Florence + The Machine sempre foi sobre dançar na escuridão. Sobre abraçar cada demônio interno, aceitá-los e finalmente deixá-los ir.
Das harpas, tambores, baterias e a percussão enérgica; da eloquência grandiosa e ecoante; do poder que nasce da honestidade e da angústia, e mesmo assim consegue alcançar a liberdade. Mesmo uma década depois, o disco ainda parece jovem, como se fosse capaz de preservar em suas canções a alma conflituosa da juventude de Florence. Hoje podemos olhar para trás, e acredito que Welch também, e ver que essa memória – talvez ainda um pouco dolorida –, é muito mais que uma memória: é o prefácio de uma vida inteira.