Marcela Lavorato
Lançado cinco anos depois do incêndio no CT do Flamengo, que matou dez jogadores da base em Fevereiro de 2019, Longe do ninho: Uma investigação do incêndio que deu fim ao sonho de dez jovens promessas do Flamengo de se tornarem ídolos no país do futebol é um livro que honra as memórias daqueles se foram e dos dezesseis jovens que sobreviveram. Daniela Arbex, jornalista investigativa, não falha em trazer – assim como em Holocausto Brasileiro (2013), Cova 312 (2015) e Todo dia a mesma noite (2018) – o desrespeito dos responsáveis pelo incêndio que vitimou Arthur Vinícius, Athila Paixão, Gedson Santos, Pablo Henrique de Souza, Vitor Isaías, Bernardo Pisetta, Christian Esmério, Jorge Eduardo dos Santos, Samuel Rosa, Rykelmo de Souza e seus sonhos.
Com uma escrita impactante, a autora se debruça em dez mil folhas de arquivos sobre o caso para trazer à tona a imprudência da instituição do Flamengo e seus dirigentes. Durante as 266 paginas, acompanhamos a reconstituição do caso e nos é revelado que o local de ‘moradia’ – contêineres totalmente inadequados nunca deveriam ser chamados pelo termo –, localizado no centro de treinamento do Flamengo, Ninho do Urubu, não tinha alvará como alojamento. Determinado como estacionamento em um dos documentos, as famílias confiaram seus filhos à instituição, pensando que a mesma iria tratá-los com respeito e decência, mas o que é mostrado indica o contrário.
“Na prática, em apenas um minuto e 28 segundos, o fogo se alastrou. Além das chamas, a fumaça preta tomou conta do alojamento. Em seguida, ocorreram explosões. Dez dos catorze sobreviventes tiveram apenas 45 segundos para fugir do local pela única porta de acesso da estrutura. Depois disso, nenhum garoto conseguiu chegar até a entrada, embora a maioria tenha tentado encontrar a saída.”
Para trazer seus fundamentos e veracidade, a jornalista redobra a atenção ao colocar os diversos registros (institucionais, públicos, jornalísticos, e-mails, entre outros…) acessíveis para o leitor. A apresentação de dados concretos dão substância o suficiente para mostrar que a narrativa quer ser a mais transparente e responsável diante dos fatos. Dividida em 12 partes, a escrita de Daniela Arbex nos monta e desmonta de tristeza ao longo dos capítulos, já que o livro foi constituído com passagens de tempos anteriores, durante e posteriores ao incêndio.
Depois de inúmeros desdobramentos para não adequar a situação do alojamento da categoria de base – pagamentos de multa ao invés da regularização, burlamento de requerimentos do Ministério Público e outras irregularidades –, a terrível consequência desses atos veio na madrugada do fatídico dia de 2019. O livro expõe a irresponsabilidade dos diversos envolvidos, até depois da tragédia, e coloca nos holofotes a necessidade de justiça que, até agora, em 2024, não aconteceu e, que de certa forma, tem que ocorrer pela dignidade das vítimas, sobreviventes e todos os atingidos.
Longe do Ninho é uma obra difícil de superar – e que nem devemos –, pois estamos lidando com as mortes de meninos que eram filhos, irmãos, sobrinhos, netos, amigos e namorados; garotos com sonhos. Além de perderem suas vidas, outros padecem por essa tragédia dia após dia. Durante a narrativa, os sentimentos aflorados se misturam de uma maneira muito sincera: angústia, tristeza e dor que antecedem o trágico momento; raiva e ódio nos trechos que tratam sobre os irresponsáveis; e compaixão e luto quando nos é mostrada a relação dos adolescentes sobreviventes, como Cauan, Francisco e Jhonatan, seus familiares e todo o acontecimento pós-tragédia.
O capítulo mais difícil de ler é o da descrição de como foi a madrugada do incêndio. Daniela Arbex, de modo sensível, revelou que a maioria dos meninos tentou fugir do desastre, porém, por inúmeras irregularidades do alojamento – à exemplo das grades nas janelas e portas que não abriam para fora –, a fuga foi dificultada ao máximo. O relato acaba se tornando muito íntimo e necessário, mostrando o que não se pode esquecer para que a história não se repita.
O amor pelo futebol – que vinha muitas vezes da própria família, como a Dona Jô, avó de Vitor Isaías – e a possibilidade de mudar a realidade de suas famílias eram os motivadores para os meninos, com tão pouca idade, saíssem de seus ninhos familiares para um em que almejavam o sucesso: o Ninho do Urubu. Partindo de Minas Gerais, Paraná, Tocantins e do Brasil inteiro, os atletas enfrentavam seus e incertezas para conseguirem viver do esporte. Longe de suas famílias, a única troca que aliviava a distância eram as ligações e os aplicativos de mensagens. Nesse trecho, é muito arrebatador quando a autora nos apresenta algumas das últimas mensagens trocadas entre os meninos e seus familiares, além também dos contatos dos sobreviventes com os pais após o incêndio.
A concepção do livro-reportagem veio após uma mensagem de Leda, mãe de Bernardo Pisetta, que se apresentou como “mãe de uma das vítimas da tragédia do dia oito”. Depois desse contato delicado, Arbex mostra-se, mais uma vez, como uma escritora que resgata a memória daqueles que nunca devem ser esquecidos. Com isso, as histórias dos meninos são contadas não somente pela perspectiva da calamidade, mas também pelas memórias de vida que foram constituídas nestes curtos anos de vida.
Por estarem longe do núcleo familiar, os garotos do Ninho constituíram entre si uma outra família. Vivendo o mesmo sonho de serem jogadores de futebol profissional, amizades e trocas sinceras foram cultivadas, o que aliviava, de certa forma, todo o processo desse desejo incerto. Entre eles, eram criados inúmeros momentos divertidos, como uma saída para ir comer em uma lanchonete ou tomar um açaí, jogar uma partida de Free Fire e, claro, jogar uma bola. Essa reciprocidade relatada durante todo o livro traz melancolia, porque entendemos de uma maneira avassaladora que foi tirado deles o direito à vida.
No fim da narrativa, a autora retrata a vida das famílias dentro desses cinco anos e também a trajetória de alguns dos atletas sobreviventes. Além disso, a obra traz também alguns manifestos feitos em homenagem: o mural com as imagens dos dez garotos produzido pelo artista Airá OCrespo e o movimento Não Esquecemos, feito pelo Flamengo da Gente, que tem como objetivo enaltecer a memória das dez vítimas e nunca deixar o compromisso de jamais esquecer. Por isso, o livro é pelos que se foram, pelos que ficaram e por aqueles que jamais irão abraçar seus entes queridos novamente: #NãoEsquecemos.
“Respondi que na verdade não escolho escrever sobre tragédias, mas sobre as omissões que causam tragédias, para que elas não se repitam. Afinal, se uma história não é contada, é como se ela não estivesse existido.”
– Longe do Ninho (2024)