Marina Ferreira
A cabeça cheia de bebidas e problemas, a vibração sensual da noite e as luzes rápidas refletidas no globo espelhado do teto de alguma boate decadente do Centro do Rio de Janeiro (ou de qualquer outro centro decadente de qualquer outra cidade do mundo). É essa a visão e o sabor que o Letrux em Noite de Climão deixou ao se encerrar após 2 anos de uma era bem sucedida que lançou Letícia Novaes em sua carreira solo, após 9 anos de parceria com Lucas Vasconcellos no duo Letuce. O sentimento de confusão explosiva e embriaguez desvairada parece reger esse primeiro trabalho, assim como se apresenta de ponto de partida para o seu sucessor, Letrux Aos Prantos. Nos levando à uma espiral de sensações remetentes à uma belíssima ressaca física e moral dividida em lado A e lado B, o álbum é um dos indicados à categoria de Melhor Álbum de Rock ou de Música Alternativa em Língua Portuguesa no Grammy Latino 2020.
A dor de cabeça, a sensibilidade à luz, o desconforto na boca do estômago e o questionamento do que aconteceu na noite passada parece se iniciar logo na primeira faixa Déjá-Vú Frenesi, que abre as portas para o tom melancólico e muito mais agoniado que seu antecessor, embora estabeleça uma atmosfera dançante para o lado A. Em seus quase cinco minutos de música, Letrux parece refletir caminhos, colocar na balança os acontecimentos que a trouxeram até aquele momento e em sua sonoridade barulhenta de guitarras fortes, como uma queda livre para dentro da cabeça da artista, repete inúmeras vezes “viver é um frenesi”. E isso ela comprova nas faixas seguintes.
O coração partido e ainda não remendado que deu seu ar da graça em alguns momentos do Climão também dá as caras em Aos Prantos, na canção Dorme com Essa. A letra fala de um amor recente, que ainda lhe faria engasgar caso o visse na rua. Alguém que ela ainda não está pronta para encarar ou superar. A propósito, o amor e a sensualidade também estão presentes no disco, nas canções Fora da Foda e Contanto Até Que, de ritmos que já podem ser entendidos como a identidade sonora de Letrux e que de forma debochada e divertida falam sobre relacionamentos, provocações e reviravoltas.
Em Letrux Aos Prantos, o disco pisciano da capricorniana com ascendente em virgem, é fácil entender a linha de raciocínio seguida por Letícia, que já afirmou ter sentido a necessidade de “olhar pra dentro” ao criar seu segundo trabalho. O disco é um reflexo de toda uma geração que fez seus planos de vida e criou expectativas durante tempos políticos mais favoráveis e que agora se percebe sem condições de transformar esses planos em realidade. Na canção Estou aos prantos, a quarto do álbum, conseguimos sentir exatamente as insatisfações de quem canta “Não dá pra ter bebê/ Não dá pra ter um carro/ Não dá pra ser no débito/ Não dá pra ser”, pois somos essa geração de insatisfeitos, que tanto queria e pouco podem.
Vai Brotar é a canção que encerra o lado A, e assim como Letícia definiu: “é o apocalipse de uma manifestação utópica dos espiritualizados versus cínicos”. A sonoridade oitentista tropicaliente da canção sugere uma viagem quase surrealista pela criatividade vibrante dos compositores e é quase possível ouvir, de forma inconsciente, o chiado do disco ao se encerrar e os poucos momentos de silêncio em que tiramos a agulha e viramos o LP.
No lado B, somos jogados diretamente em Cuidado, Paixão, o encontro do furacão Letrux e o samba, dando um gostinho de alguns experimentos sonoros feitos nessa segunda parte. A letra narra uma pequena confusão dos arroubos românticos e atrapalhados de Letícia, onde é quase possível visualizar a cena doce e um tanto cômica no corredor do mercado, do encontro de duas pessoas em momentos diferentes e sentimentos diferentes, onde um tchau é confundido por te amo. A faixa seguinte, Sente o Drama, traz um quê de Janis Joplin na bateria e as guitarras arrastadas, numa parceria acertada com Liniker e novamente somos apresentados às insatisfações pessoais da cantora que também se refletem nos pequenos conflitos diários da geração com a qual ela se comunica.
A viagem sonora e quase lisérgica do disco prossegue nas canções El Dia Que no Me Quieras, numa mistura fantástica do sintetizador e o sotaque tijucano nas frases cantadas deliciosamente em espanhol, e em Abalos Sísmicos, tão atual em sua temática quanto ousada em suas mudanças repentinas de ritmos e rumos. Salve Poseidon nos traz novamente o jeito divertido com que Letrux conduz suas músicas, e seja pelo título da canção, a batida envolvente ou a menção ao dois de fevereiro, somos levados diretamente à beira do mar. Novamente a cantora nos dá um de seus desabafos pessoais, dessa vez dizendo: “Eu choro com as coincidências/Eu quero estar em todas as coincidências”. Letícia pode ser apaixonada por elas, mas não foi por mero acaso que se tornou a artista que é hoje.
O encerramento do disco através de uma canção em inglês, íntima e com apenas a voz de Letícia em destaque nos dá a sensação de tradição, remetendo diretamente ao fechamento do Climão. Amarrando o trabalho, na canção Letrux reafirma sua identidade artística.
O tom trágico, pessoal e ao mesmo tempo cínico de Letrux Aos Prantos nos mostra exatamente quem é Letrux: profunda, intensa, sagaz, inteligente e claro, cômica. Uma artista que entende sua voz, suas angústias e felicidades e sabe exatamente o caminho que trilha ao colocar um trabalho na estrada. Um trabalho completo, coeso, de uma estética bem construída e que em suas particularidades, faz jus à indicação ao prêmio e se configura como um dos possíveis favoritos.