Laura Hirata-Vale
Lar de navegantes, marinheiros e piratas, os oceanos sempre tiveram sua importância para a Humanidade. Os sete mares foram protagonistas na compra de especiarias e temperos, em descobrimentos e guerras. Além de água, sal e matéria orgânica, eles são compostos por mistérios, histórias e lendas; sereias, tubarões gigantes e os mais diversos monstros habitam-nos. Porém, mesmo com suas peculiaridades obscuras, pode-se encontrar no mar um dos fenômenos mais belos da Terra: as ondas. Cristalinas e salgadas, elas são responsáveis pela trilha sonora e por parte da paisagem das praias.
E se as ondas existissem para nos lembrar de que ainda estamos vivos?
É com essa reflexão sobre as ondas do mar que começa o drama franco-brasileiro La Parle. Dirigido, roteirizado e protagonizado pela brasileira Gabriela Boeri, e pelos franceses Fanny Boldini, Kevin Vanstaen e Simon Boulier, o longa é situado em Guéthary, cidade na Costa Basca Francesa, e gira em torno da lenda de La Parle, uma onda mística, responsável por revirar sentimentos e emoções. Vivendo um verão litorâneo e europeu, cada integrante do quarteto tenta aproveitar o sol, saborear o sal e respirar a maresia de sua maneira. Gabriela reflete sobre saudades de seu país natal; Fanny teme e evita um resultado; Kevin tenta terminar a montagem de seu filme, enquanto Simon usufrui das diversões praianas, e torce para que os amigos se juntem a ele e consigam descansar.
Lançado em 2022 na França, durante o Festival International du Film de Saint-Jean-de-Luz, o filme ancorou no Brasil pela 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, e chegou às telonas no final de Junho de 2023, com distribuição feita pela Pandora Filmes. Em uma residência cinematográfica na casa de Claude Lelouch, era a primeira vez que Fanny, Gabriela, Kevin e Simon se encontravam. E, por causa de uma ideia do cineasta sênior – fazer um filme com o celular, sem tentar imitar uma câmera de cinema –, se uniram e deram início à produção do longa.
Por ser gravado, em sua maioria, com câmeras de iPhones, o longa traz uma experiência documental que beira os filmes caseiros. Os takes são diversos, indo dos rostos dos protagonistas em planos fechados para o cotidiano e as paisagens litorâneos de Guéthary. Ora tremidas, ora estáveis, as cenas dão um ar sentimental e íntimo ao filme, e retratam, de forma leve e espontânea, as emoções de um período de férias veranil, quente e solar. Além disso, a informalidade das câmeras de celular fez os atores – que, até então, nunca haviam atuado – mais confortáveis durante as filmagens, dando-lhes mais liberdade para viver as gravações, deixando-nas mais naturais e cândidas. A escolha também traz a impressão de que as imagens foram feitas em primeira pessoa: quem assiste à produção assume uma presença de personagem, como se estivesse ao lado de Fanny, Gabi, Kevin e Simon.
Como os personagens e atores possuem o mesmo nome, o filme acaba recebendo um ‘quê’ duvidoso: seriam os acontecimentos reais ou não? O roteiro possui como inspiração conflitos e problemas do quarteto, e assim surgiu a ficção. Tão naturais e corriqueiros, os momentos do longa são tangíveis, verossímeis e quase físicos, podendo acontecer com qualquer um. A saudade da família – mais especificamente, das avós –, o divórcio dos pais e o receio da volta de doenças são normais na vida humana, fazendo com que a película seja sentida pelo coração de muitos. Além disso, é visível que o processo de escrita foi solto e fluido, sem muitas formalidades, deixando claro que, durante as filmagens, o roteiro mudou e se adaptou às situações.
Os artifícios cinematográficos utilizados pelos diretores possuem uma grande importância para La Parle. Além das câmeras de celulares, o longa conta com a ausência de cores, deixando-o ainda mais imaginativo e experimental. A escolha do preto e branco lembra os filmes clássicos, com um porém: a definição é maior do que antigamente, deixando as texturas das cenas mais marcadas e robustas. A contraposição entre o longa e sua filmagem também é interessante – o contraste entre o branco, o preto e o cinza é forte, fazendo com que o clima veranil, leve e úmido se torne dramático e um pouco doloroso.
Dor esta que, durante seus 75 minutos, acaba surgindo por meio de imagens de arquivo, que documentam a infância de Gabriela e de Kevin. Alguns momentos ainda possuem narrações que explicam e mostram um pouco mais quem são os protagonistas. La Parle ainda usa telefonemas e mensagens de caixa postal para enriquecer ainda mais essa narrativa tão singela e delicada: o primeiro recurso, usado por Gabi e Kevin, que conversam com seus familiares; enquanto o segundo aparece quando Fanny recebe ligações e não as atende. Em sua essência, o longa atua como um grande relato pessoal feito por quatro pares de mãos e destaca, com muita clareza, a história das duas mulheres que, com o passar do tempo, amadurecem sua amizade.
Composta por Charles Tixier e Arthur Decloedt, a trilha sonora é leve e refrescante, como a água do mar. Acompanha – de forma orgânica e fluida – toda a narrativa, por meio de suas canções melódicas e calmas, que lembram uma tarde ensolarada na praia, reafirmando que La Parle é um filme sobre viagens de férias de verão. Na maresia úmida e salgada da Costa Basca, há uma serenidade quase inexplicável. Há algo pacífico, relaxante, que faz a reflexão da onda mística La Parle atingir não só os protagonistas, mas também quem assiste ao longa. “A vida é uma loucura. É como o mar. Ela vai para trás, para frente, para trás, para frente, e cada vez novas coisas se acrescentam na viagem”, diz Fanny. E Simon responde: “uma nova onda, nunca a mesma”.
Algo que contribui ainda mais para a serenidade sincera de La Parle é a única cor que é mostrada além do preto e branco, mesmo que em pequenos detalhes. O azul, tom do mar e tom do céu, reafirma a tranquilidade, a harmonia e a espiritualidade. As ondas de sentimentos mostram que, mesmo em um longa tão calmo e despreocupado, muitos pensamentos podem aparecer. Em uma casa de veraneio, banhada pelo Oceano Atlântico, regada pelo sol europeu que só se põe tarde da noite, em meio a conversas profundas, conclusões de anseios dos mais variados podem surgir. Afinal, “na espera, também acontece muita coisa“.