Gabriel Oliveira F. Arruda
Após uma estreia surpreendente em 2018, a série da BBC America, co-produzida pela AMC e exibida no Brasil pelo Globoplay retorna para mais uma temporada sangrenta, maníaca, chic e deliciosamente obsessiva.
Você sabe desovar um corpo?
Ao final do oitavo episódio de sua primeira temporada, Killing Eve havia feito algo surpreendente: a série, comandada pela atriz e roteirista britânica Phoebe Waller-Bridge (Fleabag, Broadchurch), havia aumentado sua audiência consecutivamente, episódio a episódio, culminando em um final de temporada assistido por 86% pessoas a mais do que sua premiere, algo que não havia sido feito por mais de uma década.
A série, baseada nos romances de espionagem do britânico Luke Jennings, narra a caçada da funcionária do MI5 Eve Polastri (Sandra Oh) pela assassina internacional conhecida apenas como Villanelle (Jodie Comer) e como a obsessão de uma pela outra nasce e cresce ao longo de seu prolongado jogo de gato e rato.
Desde então a série foi indicada ao Emmy pela performance de Sandra Oh e pelo roteiro de Waller-Bridge, ganhando um Globo de Ouro e 3 prêmios BAFTA por Melhor Série Dramática, Melhor Atriz (Jodie Comer) e Melhor Atriz Coadjuvante (Fiona Shaw).
Em sua segunda temporada, Killing Eve alcança outro feito impressionante: ela consegue dobrar a dosagem do que havia dado certo na temporada anterior ao mesmo tempo em que explora destemidamente novas direções, com um dos roteiros mais ousados e bem acabados da televisão moderna.
Se a primeira temporada de Killing Eve é a intro de seu álbum, tensionando os instrumentos e arrumando o palco para o grande solo entre suas duas protagonistas, a segunda é quando o resto da banda começa a tocar e você percebe que as coisas não vão ser mais as mesmas.
É fácil fazer analogias musicais quando se fala em Killing Eve, já que a série possui um excelente senso de ritmo aliado à narrativa; a trilha sonora, parte tirada do primeiro álbum da banda Unloved, Guilty of Love, parte criada especialmente para a série, é feita e editada para ressoar perfeitamente com as personagens de Oh e Comer, ao ponto de que o conflito entre as duas em cena é indistinguível do som enervante de Unloved.
Seja durante a emblemática Xpectations, que toca durante os créditos de cada episódio, seja em When a Woman is Around, que serve de background para o primeiro assassinato de Villanelle que presenciamos, Killing Eve usa cada oportunidade que tem para estabelecer sua música como um motif narrativo, nos lembrando quem são essas personagens e qual o conflito que elas travam.
Momentos de desespero
O maior triunfo de Killing Eve talvez seja sua recusa em assumir um padrão ou cunhar uma fórmula: apesar do sucesso crítico e popular, Waller-Bridge deixou o papel de showrunner da segunda temporada para Emerald Fennell, uma amiga próxima e conhecida por seu papel na série britânica Call the Midwife (2013-2017).
Fennell traz seu próprio charme a série, jogando as personagens em uma espiral de ações e consequências que às vezes parece não ter fim.
“Não podemos trapacear e pular um ano para que todo mundo volte a ser sexy e ótimo novamente. Se você é esfaqueada, mesmo se você for a Villanelle, você precisa achar uma maneira de escapar. Eu quero saber como você se limpa, como é ser uma mulher vulnerável, uma mulher que até aquele ponto nunca deixou que nada ficasse em seu caminho.” – Emerald Fennell para o The Hollywood Reporter.
Seguindo diretamente o final da primeira temporada, nos encontramos com uma Eve emocionalmente fragilizada e perturbada por seu último encontro com Villanelle. As primeiras cenas dela vagando por Paris, falando ao telefone com sua chefe, Carolyn (Fiona Shaw), e comprando um saco de doces que come mecanicamente fazem um ótimo trabalho em estabelecer o estado mental da personagem e nos dar um gostinho do arco pelo qual ela irá passar ao longo dos próximos 8 episódios. Fica difícil dizer qual possibilidade assusta mais Eve: a de Villanelle ter sobrevivido ou a de Eve ter realmente matado ela.
Villanelle, em contrapartida, está sã e… bem, ainda não salva, pelo menos por enquanto. Ela rasteja pelas vielas da Cidade Luz tomando estratégias cada vez mais arriscadas para se manter viva enquanto tenta bolar um plano para se aproximar de Eve. Diferente do que alguém possa ter esperado ao testemunhar o seu esfaqueamento ao final da temporada anterior, a obsessão dela por sua nêmesis parece ter só aumentado com a facada em seu abdômen.
O respeito e admiração que uma tem pela outra são essenciais na representação da relação opositiva delas ao longo tempo, tanto nos momentos em que as duas estão na mesma sala quanto naqueles em que estão a milhares de quilômetros de distância, e tanto Oh como Comer trazem o seu melhor para a tela, vendendo a intimidade e a peculiaridade dessa relação instantaneamente.
Apesar da série seguir por uma nova direção e tomar novos ares, não há nenhuma dúvida de que continua sendo a mesma série que nos cativou no ano passado: todo o garbo e a elegância de suas protagonistas que se traduz no figurino, no jogo de câmeras e na fotografia espetacular da série não procuram competir com a sua carga humorística, já que Killing Eve nunca perde a oportunidade de rir de si mesma e, mais do que isso, convida o espectador para rir junto.
Desse jeito, a série te mantém atento em praticamente toda as cenas, te fazendo se agarrar a cada palavra dita e a cada expressão feita, fazendo com que um episódio de 45 minutos passe com a velocidade de um de 20. Não é só um espetáculo de storytelling, mas também um exemplo de como se estruturar habilmente uma narrativa dentro de um único episódio e ao longo de uma temporada inteira.
Você é minha
As atuações continuam ser de um nível singularmente acima de qualquer outra coisa na televisão. O jogo entre Eve e Villanelle permanece em sua melhor forma nas atuações belíssimas de Oh e Comer, mas também se revelam por meio de personagens secundários inéditos, como os novos parceiros de Eve na caçada por Villanelle, Jess (Nina Sosanya) e Hugo (Edward Bluemel), que revelam novos aspectos da crescente obsessão entre as duas e meios pelos quais Villanelle irá tentar manipular Eve.
Enquanto isso, Fiona Shaw e Kim Bodnia (ambos indicados ao BAFTA pela série) continuam dando um show à parte no papel de mentores das protagonistas; a elegante, impetuosa e duvidosa agente Carolyn Martens e o antigo contratante de Villanelle, Konstantin. Não é um trabalho fácil ter que partilhar a cena com tantas performances de peso, mas tanto Shaw como Bodnia se provam mais do que a altura da tarefa.
Tudo isso encaminha a temporada para um desfecho explosivo que subverte as expectativas ao mesmo tempo que entrega momentos ansiosamente aguardados pelos espectadores. Ver Killing Eve até agora foi, citando Stephen King, “o raro prazer de ver um elenco e uma produção que fazem tudo – cada coisinha – absolutamente certo”. É uma sinfonia de sangue, humor e paixão que te deixa hipnotizado até que a última nota desapareça no ar.
Sorry Baby x
Você pode ter notado a quantidade de vezes que eu usei a palavra “obsessão” até agora. Em circunstâncias normais, eu me desculparia pela minha falta de imaginação, mas realmente não há melhor jeito de se descrever a sensação de se ver Killing Eve, semana a semana, e se deparar com uma das melhores coisas já feitas na televisão.
A própria série sabe que estamos obcecados com ela: foi um dos grandes pontos da campanha de marketing da segunda temporada; “Sua obsessão retornou” foi uma das principais mensagens repetidas ao longo de sua publicidade. Só posso voltar a afirmar, como Allison P. Davis colocou habilmente em um artigo para o The Cut, “nenhuma série de TV importa, exceto Killing Eve”.
“Eu penso em você o tempo todo. Eu penso no que você está vestindo, no que você está fazendo e com quem você está fazendo. Eu penso nos amigos que você tem, eu penso no que você come antes de ir trabalhar, no shampoo que você usa, no que aconteceu com a sua família. Eu penso nos seus olhos e na sua boca e no que você sente quando mata alguém. Eu penso no que você comeu no café da manhã. Eu só quero saber tudo.”