Henrique Marinhos
Em seu álbum de estreia, Isolation, lançado em 2018 pela Universal Music, a talentosa Kali Uchis se consolidou como uma das vozes mais interessantes e inovadoras do pop alternativo. Apesar da colaboração com artistas renomados, como Thundercat, Damon Albarn, Kevin Parker, Steve Lacy e Badbadnotgood, Uchis manteve sua identidade e brilho em destaque, recebendo elogios da crítica e do público. Não por menos, o trabalho foi indicado ao Grammy de Melhor Álbum de Música Alternativa em 2019 e certificado como ouro pela Recording Industry Association of America em 2020.
A ascendência de Uchis é uma das características mais marcantes em suas músicas. Ela nasceu nos Estados Unidos, mas é filha de imigrantes colombianos. Crescendo entre os dois países, suas inspirações se baseiam majoritariamente nas raízes latinas. Alternando entre o inglês e o espanhol, a cantora explora diferentes ritmos e influências musicais como o reggaetón, a cumbia e a salsa e, através de latinidades sensuais e apaixonadas, cria em Isolation um universo próprio onde pode viver seu amor sem interferências ou julgamentos.
Celebrando seus cinco anos de existência, a obra apresenta uma estética que mistura o vintage com o moderno e evoca a nostalgia e o romantismo de artistas à la Lana Del Rey e Amy Winehouse. A cantora também aborda questões sociais e políticas nas letras, como a exploração dos imigrantes e a luta pela igualdade e justiça. Em Isolation, Kali Uchis demonstra sua versatilidade e habilidade para transitar entre diferentes gêneros musicais, criando um som coeso e envolvente desde Body Language (Intro), que abre o álbum com uma atmosfera sensual e misteriosa, até Killer, que o encerra com um gosto de quero mais.
A faixa de abertura foi produzida por Thundercat e tem influências de funk e jazz. Ela serve magistralmente como uma introdução para o universo sonoro e temático do disco, explorando as diferentes formas de comunicação entre as pessoas através da linguagem corporal, verbal ou telepática – seu próximo álbum, Sin Miedo (del Amor y Otros Demonios) ∞, que o diga. O debut é constituído por letras inteligentes e reflexivas ao abordar questões pessoais e universais, mas, sobretudo, sua visão de mundo como uma mulher latina no país mais explorador e racista da América do Norte.
De modo geral, a artista aborda temas muito íntimos: a vida de imigrantes e o amor como forma de dominação e submissão, em colaboração com BIA e Jorja Smith, respectivamente nas faixas Miami e Tyrant. A primeira é uma de suas composições mais famosas, na qual recebemos uma crítica à sociedade estadunidense que valoriza o dinheiro e o status acima de tudo, marginalizando e explorando os imigrantes. A música também é um retrato dessas mulheres em busca por uma vida melhor nos Estados Unidos, em contrapartida à violência, ao preconceito e à solidão.
Sem esforço, a musicalidade de Uchis é uma expressão de sua personalidade e experiências de vida, com sua voz sendo um instrumento de contar histórias e transmitir emoções de maneira orgânica. A artista incorpora a paixão e a expressividade do espanhol com maestria, o que consequentemente resulta em uma obra que é ao mesmo tempo pessoal e universal, sabendo se conectar com seu público e criando uma experiência única.
Em Just a Stranger, com Steve Lacy, encontramos um relacionamento superficial com um homem que só quer usá-la, em uma sátira ao estilo de vida materialista e vazio dos ricos e famosos, que se aproveitam das pessoas mais pobres e vulneráveis. A faixa também é uma forma de Kali Uchis afirmar sua independência e autoestima, dizendo que ela não precisa do dinheiro ou da atenção desse homem, pois ela sabe o seu valor.
Seu desejo de fugir com seu amante para um lugar paradisíaco é contagiante. A cantora expressa uma fantasia romântica ao escapar da realidade cruel e encontrar a felicidade. A faixa Flight 22 é, principalmente, sobre se envolver em um relacionamento e não se importar onde isso vai acabar, se permitir fazer isso sendo quem é. O final sombrio, em alusão ao Boeing 727, para os passageiros do voo 22 é usado como uma metáfora para o destino do romance, sobre o qual ela insinua ao final: “Pelo menos eu estou indo para baixo com você / Nossa bagagem pode estar muito cheia no voo 22”.
É impressionante o que a cantora realizou em seu álbum de estreia: a qualidade e originalidade se juntam às reivindicações pelo direito de ser dona de sua própria arte, e ela é vitoriosa em não se submeter aos interesses alheios ou precisar de eras para fazê-lo. Sem medo de expor suas vulnerabilidades e conflitos, há 5 anos Kali Uchis falou sobre amor, mas não de uma forma clichê ou romântica.
Em Isolation, ela explorou as diferentes facetas e as consequências do sentimento, dualista entre a liberdade ou opressão, doce ou amargo, sonhador ou realista, fiel ou traiçoeiro. Mas, sobretudo, pontua o amor-próprio, essencial para se sentir bem consigo mesmo e com os outros. Ouvir o disco é um convite ao seu mundo, isolado e conectado, triste e alegre, simples e complexo.