Jho Brunhara
A quarentena mexeu com todo mundo. Talvez você não aguente mais ler e ouvir sobre isso – nem eu –, mas é impossível não traçar um paralelo entre o novo extended play (EP) de Troye Sivan, In A Dream, com os últimos meses. Apesar da maior parte das faixas terem sido criadas antes do mundo acabar, as palavras falam diretamente com todos nós, e quase todas as músicas parecem ter sido escritas ontem mesmo, quando ninguém podia sair de casa por motivo nenhum, e até os sonhos eram mais interessantes que a vida real. Bem, não só os sonhos, mas os pesadelos também.
Assim como muitos de nós, Troye voltou para a cidade de seus pais para passar a quarentena. Essa reconexão com Melbourne já era muito antecipada por ele, como canta na quase profética Take Yourself Home, escrita antes da pandemia chegar em Los Angeles, onde estava morando. “Estou cansado da cidade, grite se você concordar comigo. Se eu vou morrer, que eu morra num lugar bonito” parece ter saído diretamente de um tweet sobre alguém cansado de ficar em casa pelo isolamento social. Essa brilhante e pessoal confissão é apenas um dos grandes momentos de In A Dream.
Troye, uma das vozes mais importantes para a representatividade LGBT+ no mundo da música, vem cantando desde seus primeiros trabalhos sobre sua vivência. Mesmo que indiretamente, In A Dream se reconecta com muitos temas de seu debut, Blue Neighbourhood (2015), e com Bloom (2018). Quando se é queer, os eventos da adolescência podem ser completamente diferentes de uma pessoa hétero, às vezes extremamente limitados. Desde o primeiro beijo, e até mesmo proximidade com a família. Aqui, Take Yourself Home também fala com indivíduos LGBT+ que só se assumiram depois que saíram de casa. Aqueles que tiveram sorte de serem bem aceitos pela família, finalmente encontram a oportunidade criar laços honestos com os pais, e recuperar um pouco do tempo que foi perdido na adolescência.
In A Dream também retoma temas de Blue Neighourhood em Rager teenager!, uma carta aberta de Sivan para seu eu mais jovem. Engatilhado pelo retorno à cidade onde passou sua adolescência, a música é um relato sobre estar preso em casa e se sentir novamente com menos de 18 anos, e todas as emoções decorrentes desse reencontro com o passado. Um dos pontos mais altos do EP e da incrível produção das faixas, assinadas pelo sueco (uau, que surpresa) Oscar Görres, também conhecido como OzGo. O projeto como um todo utiliza muito de sintetizadores nostálgicos – com direito à vários solos –, drums à la anos 80, vocais abafados, e uma vibe dream pop, com toques do new wave e até mesmo shoegaze em alguns momentos, como em Rt!.
O break de STUD transporta a atmosfera do EP diretamente pro inferninho de uma casa noturna, enquanto o australiano canta sobre se sentir desejado por um cara tesudo, em tradução livre. Em entrevista, Troye admitiu que se vê como um twink, um tipo de gay magro e com aparência mais jovem. Em inglês, a gíria stud se refere à um tipo de homem mais encorpado e viril. Apesar de em primeiro momento a letra parecer superficial, a música é na verdade uma reflexão sobre insegurança com o próprio corpo e o complexo de inferioridade tão comum em jovens, principalmente em membros da comunidade LGBT+.
O tom sexual da faixa se mistura com uma onda de pensamentos mais íntimos, e a ponte completa a vibe quase como se Sivan cantasse diretamente da cama redonda de um motel. “Você quer fazer isso, né? A gente deveria fazer isso, né?” Quem nunca ficou na dúvida dos motivos de alguém para querer transar, seja por desconfiança do outro ou insegurança do próprio corpo? Sem panos quentes, aqui o tema é tratado de forma direta e genial.
Apesar de cantar sobre saudades de casa e problemas de autoestima, a alma do EP é um coração partido. Easy se embebeda de melancolia e um solo de sintetizador para desabafar sobre o arrependimento de uma traição por parte do narrador, e a midtempo é um de seus melhores trabalhos, sonora e liricamente falando. O disco encerra com a faixa-título IN A DREAM, sobre sonhar com com alguém que não faz mais parte da sua vida. Apesar da música não dar o tom para o extended, ela, sem dúvidas, dá sentido. Em que mundo alguém não ficaria levemente enlouquecido ao passar pelo fim de um relacionamento, enquanto enfrenta uma pandemia, depois de, literalmente, ter viajado para o outro extremo do planeta e reencontrar memórias da adolescência?
In A Dream encanta por não ser um projeto pensado e calculado em excesso, e mostrar a visão artística de Troye de forma mais espontânea e genuína. É a partir dessa permissão para que a singularidade escape que se revela o melhor que o artista tem a oferecer, nas suas composições e na sonoridade. E nessa balada-de-um-homem-só, podemos dançar de casa e também nos entregar ao delírio, até que a realidade volte a ser um lugar habitável.