Vitória Silva
A realidade nunca foi tão assustadora. A pandemia do Covid-19, unida à diversas tragédias recorrentes no nosso dia-a-dia, tornou até o hábito de assistir o noticiário algo doloroso. Diante desse cenário, filmes e séries viraram uma espécie de refúgio, especialmente aqueles com conteúdo animador, que possa nos revitalizar em meio à tanta tristeza. Se é isso que você procura no momento, I Know This Much Is True não é para você.
Baseada no romance de 1998 de Wally Lamb, a minissérie segue a vida de dois irmãos gêmeos, Dominick e Thomas Birdsey, ambos interpretados por Mark Ruffalo. Um deles, nascido no dia 31 de dezembro de 1949, e o outro, em 1 de janeiro de 1950. Dois anos diferentes, devido a um intervalo de seis minutos. Uma pequena fração de tempo capaz de gerar um abismo de divergências entre eles.
Muitas narrativas que se propõe a retratar a vida de irmãos utilizam a temática batida do bom contra o mau, criando alguma espécie de rivalidade familiar. Mas em I Know This Much Is True a história é diferente. Por mais extremos que os gêmeos Birdsey possam ser um do outro, eles se complementam. Dominick é um homem de forte temperamento, arrogante e egoísta na maior parte do tempo. Mas boa parte da sua personalidade se altera (ou se força à isso) na presença de Thomas, que sofre de esquizofrenia paranoide. Pacífico e calmo, ele precisa se ancorar na força e inteligência do gêmeo para se proteger de si mesmo.
A trama se inicia no ano de 1990. Em uma biblioteca, Thomas decide decepar a sua própria mão com uma faca, em nome de um sacrifício feito à Deus para salvar o mundo de todo o mal. O ocorrido leva à sua internação forçada em um hospício, e Dominick inicia uma batalha para salvar seu irmão daquele lugar, que é quase uma verdadeira prisão. Em paralelo, ele também busca resgatar suas origens através de um manuscrito deixado por seu avô, a fim de desvendar a identidade do seu pai.
Os episódios tem seu início com flashbacks da infância e adolescência dos Birdsey. Narrados em primeira pessoa por Dominick, como se eles estivesse lendo o seu próprio manuscrito, conseguimos acompanhar a evolução do relacionamento de ambos. Uma relação que, no início, contava com diversos momentos de raiva dele sobre o seu irmão, sempre responsável por mostrar seus erros e fazê-lo se sentir culpado. O crescimento da doença de Thomas também é notável, com cenas agonizantes e muito bem executadas por Philip Ettinger, que interpreta os irmãos em sua fase jovem adulta, e é um grande admirador de Ruffalo.
Em contraste, o presente da trama mostra um Dominick capaz de mover montanhas por seu irmão, deixando de dar atenção até para os seus relacionamentos e questões pessoais por Thomas. Com o passar dos episódios e das viagens ao passado, é notório que todo esse anseio é motivado por um sentimento de culpa. A culpa por sempre ter julgado suas atitudes estranhas, por ter tentado se afastar diversas vezes, por não ter aproveitado os poucos momentos de sanidade existente nele. O mínimo que pode fazer agora é dar a vida pelo irmão gêmeo.
Deixando de fora da narrativa as particularidades sórdidas da vivência de Thomas no hospício, Dominick acaba por ser o grande protagonista de I Know This Much Is True. Na jornada para resgatar seu irmão e alguns fantasmas do passado, somos imersos em cada ponta do seu cotidiano, que não é nada fácil. Sua vida é uma coleção de desastres: o falecimento de sua mãe, um padrasto abusivo, o casamento terminado de forma trágica, e vários acidentes deploráveis são alguns dos episódios a que somos levados.
E o diretor e roteirista, Derek Cianfrance, não poupa os detalhes sobre nenhum deles. Sentimos a angústia e frustração de Birdsey em cada momento, ao passo que suas sessões de terapia com a Dra. Patel (Archie Panjabi) passam a ser as nossas também. Quando se chega à metade dessa minissérie de seis capítulos já não há mais esperança, sabemos que nada de bom está por vir.
I Know This Much Is True é também um marco sobre o talento de Mark Ruffalo. O ator, que estamos tão acostumados a ver por trás das camadas de CGI do Incrível Hulk, tem a produção como a prova do que ele é capaz. Ruffalo consegue incorporar com maestria cada trejeito que diferencia os irmãos Birdsey, desde o andar até a entonação na fala de cada um, o que nos leva a esquecer que ele está contracenando com ele mesmo.
Diferente da minissérie, Mark não foi deixado de lado na edição do Emmy 2020, e garantiu uma indicação à Melhor Ator em Minissérie ou Filme Para a TV. Ele ainda é uma das grandes apostas a levar o prêmio, encarando nessa disputa os grandiosos Paul Mescal, de Normal People, e Jeremy Irons, da sua parceira de emissora, Watchmen. Infelizmente, a composição e cuidado de Cianfrance na produção dos episódios não foram suficientes para garantir uma nomeação, mas a beleza de sua execução e planejamento veio para comprovar, mais uma vez, que a HBO não brinca em serviço.
I Know This Much Is True não foi feita para ser maratonada. Os longos 60 minutos de cada episódio, retratando a sequência de acontecimentos trágicos que assolam a vida dos gêmeos, são difíceis de digerir, e é preciso muito esforço para se atrever a continuar. A trama funciona quase como um terror psicológico, com os tons mórbidos e a câmera que segue as cenas lentamente, alternando para planos fechados que dão um ar de suspense e desconforto, em que se espera sempre que o pior pode aparecer.
Esse sentimento é o mesmo compartilhado pelo protagonista. Em certo momento de sua vida, Dominick passa a crer que há uma maldição em sua família, como a única forma de justificar todos os horrores que perseguem os Birdsey. Os manuscritos de seu avô só reforçam essa tese para ele, e para nós também. O desgaste diante de todos os acontecimentos de sua vida miserável fazem o pintor de casas não se esforçar nem um pouco para mudar a realidade a qual ele está destinado, salvar seu irmão é a única coisa que o motiva. E a forma como a série desconstrói toda essa teoria determinista, após se esforçar tanto para a tornar verdadeira, é monumental.
I Know This Much Is True é, antes de tudo, uma história sobre redenção. Sobre aprender a encarar e lidar com seus próprios demônios, salvar a si mesmo antes de mais ninguém. A evolução de Dominick ao longo da narrativa alcança todos esses ensinamentos, e o final feliz, que já nem imaginávamos que poderia existir, surge de forma acalentadora e poética.
A ideia de trazer para a tela uma trama rodeada apenas por acontecimentos trágicos é extremamente corajosa. A vida dos irmãos Birdsey nos leva ao âmago da miséria humana, ter que afrontar seus problemas não é uma experiência nem um pouco atrativa, mas muito necessária. Somos dilacerados diversas vezes ao longo de cada episódio. Ao final, sofremos com Dominick, e respiramos aliviados com ele também. Há dois meninos perdidos em uma floresta, e um deles foi salvo.
“Da destruição vem a renovação”