Henrique Marinhos
Há três anos estreava a dualista primeira temporada de Hunters. Aos que conseguiram terminá-la, hoje podem apreciar o segundo – e maior – ato do enredo, desenvolvido por David Weil, Mark Bianculli, Nikki Toscano e David Rosen, que divide opiniões. Com um exímio elenco, a série traz Al Pacino de volta às telas, já que seu último papel em uma produção para televisão foi em 2003, em Angels in America. Agora, o ator interpreta Meyer Offerman, um líder de caçadores nazistas à procura de fechar as feridas deixadas pela Segunda Guerra Mundial.
Longa, lenta e detalhada, a obra constrói personalidades profundas cheias de motivações, histórias e nuances. Porém, apenas na segunda temporada a conexão entre essa profundidade e a narrativa deslumbra seu público. Como acontece em um filme de origem, a morte da avó de Jonah Heidelbaum (Logan Lerman) é o ponto de ignição que incentiva o jovem da primeira geração pós-guerra a procurar o assassino que tirou a única família conhecida por ele. Infelizmente, o desenrolar do roteiro apresenta uma transição gradativa e confusa para relacionar as motivações pessoais à causa maior, mas, aos quarenta e cinco do segundo tempo, as lacunas se complementam esplendorosamente.
Produzida por Jordan Peele, a série desenvolve elementos que percorrem uma linha tênue entre o encaixe perfeito de peças totalmente diferentes e o completo caos. Assim, ela permanece intacta do começo ao fim, desde a fotografia saturada, assinada por John Lindley Asc, em referência direta a Bastardos Inglórios, até a ambientação da época, por Toscano e Weil, que, ironicamente, remete aos filmes de ação protagonizados por Al Pacino na década de 1970.
A apresentação da série como dualista – ou até multifacetada – não se dá somente por quesitos técnicos. A coexistência do teor reacionário em que a temática ficcional trabalha e a realidade na qual se baseia também é um ingrediente capaz de refletir questões sociais complexas nas quais a arte está inserida. O Museu de Auschwitz, por exemplo, criticou a criação de um tabuleiro de xadrez humano representado na obra após o lançamento e popularização do episódio, mencionando que honram as vítimas preservando a precisão factual e inventar um falso jogo não é apenas uma “tolice perigosa e uma caricatura, mas também dá boas-vindas aos futuros negacionistas”.
Ainda que o criador descreva Hunters como “uma carta de amor à sua avó materna”, a polêmica difundida pelo Museu gerou diversas divergências entre o público. Mesmo assim, não é possível negar que a expressão de determinadas cenas e construções – ainda que fictícias – transgride e minimiza diretamente os pilares da resistência construídos pelos sobreviventes do Holocausto em memória à identidade judaica.
Ainda com as problemáticas bem expressas e válidas, a obra provoca uma imersão desde o começo, sendo possível elaborar um quadro de pistas com todas as conexões e pontos centrais da trama. A série trabalha com reviravoltas constantes e coesas, refletidas em uma cadeia de objetivos. descritos por Joshua Rivera, do The Verge, como “uma lembrança angustiante do sofrimento do Holocausto, uma fantasia de vingança satisfatória, uma peça de época sensacional e uma comédia de humor ácido”. Tudo isso é representado e introduzido de um jeito caótico pelo primeiro teaser da produção, exibido no SuperBowl 2020.
A temática não se restringe a fatos documentais e tampouco a ficções distantes e questões reflexivas. Desde o simples fato de existir, Hunters tenta seguir uma onda de lançamentos de obras históricas que criticam o retrocesso com a recente alta da extrema-direita na mídia, o neofascismo em instituições governamentais e os discursos de ódio. Mas sua referência não é tão bem integrada quanto seus aspectos técnicos e roteiro. Críticas por críticas não promovem reflexão. Além de tudo, sua referenciação histórica é rasa e não desenvolvida, e está entre a lembrança do Holocausto e uma fantasia corajosa.
Por si só, a obra indiscutivelmente apresenta um âmago curioso, imprevisível e ainda instigante. Seja pela produção de Peele, produtor de Corra e Não! Não Olhe!; pelo elenco hipnotizante com Lerman, Pacino, Tiffany Boone, Jennifer Jason Leigh e muitos outros caçando nazistas – o que poderia ter dado errado? -; ou pela estonteante fotografia e direção de câmera. Mas, acima de tudo, pela imprevisibilidade de um roteiro coeso e bem construído.
O penúltimo episódio da temporada performa tudo aquilo que a produção poderia ser: majestosa, intensa, angustiante e representativa. O grande acerto de Hunters foi entregue em seu sétimo episódio, The Home, com performances, cenários e um roteiro de invejar longas-metragens durantes seus hipnotizantes 40 minutos. As referências sutis, em que cada cena aparenta ser milimetricamente pensada, o transformaram em um quebra-cabeças de mil peças, em que mesmo a satisfação provocada por concluí-lo é seguida pela tristeza da imagem formada e da história contada.
Ao fim, o segundo ano se resume a um desenvolvimento inicial clichê, mas capaz de preencher todos os requisitos de uma boa série que reúne a turma na última temporada – agora, com um objetivo maior deixando todo seu desenvolvimento cada vez mais imprevisível. Caminhando para seu encerramento programado, a obra não poderia abrir brechas para quaisquer pontas soltas e seu público sabe disso. Se tratando de uma temática de época, cabe ao contemporâneo refletir sobre o que a história pode nos ajudar a prevenir.