Fellipe Gualberto
Hora de Aventura se apresenta como o carro-chefe do Cartoon Network desde 2010. A animação criada por Pendleton Ward conta as aventuras de Finn, um garoto humano, e Jake, seu cão amarelo com poderes elásticos. Juntos eles são heróis da terra de Ooo, um reino encantado com princesas feitas de doces, vampiros e magos.
O desenho se passa após uma guerra nuclear que ficou conhecida como Grande Guerra dos Cogumelos, mas diferente do que estamos acostumados o ambiente pós-apocalíptico é otimista e exala alegria.
Apesar da atmosfera infantil, o desenho apresenta uma narrativa carregada e cada segundo tem uma quantidade enorme de informação. Até mesmo a abertura do último episódio apresenta uma história escondida que poderia ocupar uma temporada inteira. A prova disso é a existência de vários vídeos que decifram todas as mensagens escondidas em episódios de Hora de Aventura.
Os méritos da série não são poucos. Para começar, a narrativa é complexa e com camadas, apresentando uma história para as crianças e uma outra para os adultos, desafiando assim o quanto o telespectador pode se envolver e abstrair.
A animação quebra expectativas por manter um design infantil que desafia a dar credibilidade e ao mesmo tempo prova que desenhos para crianças podem ser bem construídas. O segredo é que quanto mais a sério você leva a história, mais sério ela vai se mostrar.
Durante os 8 anos do programa acompanhamos a evolução dos personagens. Finn, por exemplo, começou como alguém que via o mundo mundo como preto e branco, se colocando no lugar do herói e levando como obrigação derrotar os vilões. Com o passar das temporadas, o mesmo amadurece e passa a entender os dilemas complexos que rondam as classificações de “bem e mal”.
Além do desenvolvimento de Finn vale ressaltar a história da Princesa Jujuba. No começo, a personagem é representada como uma administradora um tanto mimada e fútil, de um reino de pessoas doces onde tudo era perfeito, chegando, às vezes, a encarnar o papel de donzela que precisa ser salva. Apesar disso, Bonnibel (primeiro nome da princesa que só conhecemos nas temporadas mais recentes), passa a ser uma mãe que criou um povo literalmente de sua própria carne e cuida de todos como filhos, às vezes sendo superprotetora, mas sempre com a melhor das intenções. Ao final da série são muitas as vezes em que a princesa salva o dia.
Outro mérito de Hora de Aventura, mais especificamente de Rebecca Sugar, que é escritora e artista de storyboard do programa, foi o de abrir caminho para a representatividade LGBT na animação. Apesar de Star vs As Forças do Mal (série animada do Disney Channel) ter sido o primeiro desenho a exibir um beijo gay, o relacionamento entre Jujuba e Marceline já era desenvolvido muito tempo antes.
Enquanto trabalhava na série, Rebecca conseguiu inserir de maneira sutil a ideia de um romance no passado das duas personagens, mas sem chegar a um nível onde se falasse abertamente sobre o assunto.
Quando Rebecca criou seu próprio desenho animado chamado Steven Universo, (vale dizer que ela foi a primeira mulher a comandar um desenho no Cartoon) a representatividade deu saltos gigantes.
O caminho aberto pela artista fez com que, pela primeira vez, a comunidade LGBT aparecesse protagonizando uma animação, e não com uma representatividade rápida e superficial como vinha ocorrendo na Disney. Rebecca voltou a trabalhar em Hora de Aventura em diversos momentos decisivos para o desenvolvimento do casal.
O seriado criou um universo complexo com uma religião própria contando com seus deuses, entidades cósmicas e uma força chamada por eles de magia, ao mesmo tempo que também se apropriou de alguns conceitos já conhecidos, como karma e vidas passadas. O desenho também consegue dialogar com a ciência ao tratar de temas como realidades paralelas, matéria escura e inteligência artificial.
Explicar todos esses conceitos de maneira didática, de modo que até crianças possam entender, é uma conquista de Finn e seus criadores, assim como fazer uma narrativa onde ciência e religião coexistem se completando e sendo parte de uma mesma mitologia.
O grande crédito é que mesmo com esses temas complicados o desenho sabe passar pela psicodelia sem deixar o público boiando e a história se mantém leve e fácil de se entender, basta que você acompanhe o desenvolvimento.
Próximo ao final do programa os produtores optaram por minisséries, essas contavam com aberturas especiais e eram usadas para desenvolver um tema específico e avançar rapidamente a narrativa em um curto espaço de tempo. As três minisséries trouxeram respostas para as questões mais aguardadas da série, elas são: o passado de Marceline, a localização dos humanos e o poder dos seres elementais.
Os episódios finais de Hora de Aventura foram uma tentativa de fechar todas as pontas que ainda estavam soltas, como a relação entre Marceline e seu pai (Marcy and Hunson), a concepção de Jake (Jake, the starchild), o passado de Dona Tromba (Ring of Fire) e a amizade entre Finn e a princesa de fogo (Son of a Rap Bear).
O último episódio, Come along with me, conseguiu acabar com um timing bom e não decepcionou os fãs. Sinceramente o que queríamos não era uma grande batalha entre a Princesa Jujuba e seu tio, que era para onde a narrativa parecia levar, mas sim a resolução dos últimos arcos, como a cura de Simon, a chegada de Gob e o final fatal de Fern.
O desfecho da série não diz como a morte de Finn acontecerá, porém quem acompanha a animação sabe que sua história conta com muitas mortes e recomeços formando um eterno ciclo. A real dúvida que ficou agora que Hora de Aventura “morreu” é se um novo desenho com uma qualidade tão alta vai surgir para continuar o ciclo das animações excelentes do canal. Provavelmente não.