Vitória Gomez
Para Bas Devos, fazer filmes é uma desculpa para ser curioso. Here, seu quarto longa-metragem, usa essa curiosidade para observar a relação de dois estranhos consigo mesmos, um com o outro e com o país que habitam, estrangeiro tanto quanto eles mesmos ali. A produção desembarcou no Brasil no 25° Festival do Rio depois de conquistar dois troféus no Festival de Berlim e, olhando para o ordinário, torna até o comum fantástico.
Na obra, o diretor belga segue Stefan (Stefan Gota), um trabalhador romeno da construção civil morando em Bruxelas, na Bélgica. Quando a temporada de obra acaba e ele e seus colegas – igualmente estrangeiros – poderão aproveitar as férias em seus países de origem, o protagonista encontra uma mulher que o fará pensar duas vezes se deve ou não voltar. O grande porém é que ela sequer sabe o nome dele.
O encanto de Here se faz na simplicidade. Stefan não pode ir para casa – neste caso, seu país de origem, não a residência onde mora – porque seu carro quebrou e ficará pronto em alguns dias. Nesse meio tempo, a preocupação do rapaz é cozinhar uma sopa com tudo que há na geladeira para que nada estrague. A segunda tarefa é distribuir o alimento para conhecidos, já que nem ele conseguirá consumi-lo antes de voltar.
É nessa normalidade que o roteiro – também confeccionado por Devos – se desenvolve: a relação do protagonista com a cidade e com as pessoas à sua volta é um exercício de enxergar a humanidade. Filmados poeticamente por Grimm Vandekerckhove, os altos prédios de Bruxelas, as linhas de trem e a movimentação dos transportes criam uma sensação de solitude e barulho em meio ao concreto, ressoando a condição de distanciamento, como se ali ele fosse um estrangeiro em todos os sentidos. Stefan repete a si mesmo que ali é sua casa, mas nem ele parece acreditar na afirmação.
Tal cenário é o contrário da natureza. O personagem principal, assim como o diretor, é um grande curioso e, com os dias livres enquanto espera seu carro, explora os arredores da cidade. Movido por sementes que encontrou no bolso, ele visita uma horta comunitária, um bosque perto do mecânico e uma pequena floresta local. Ao contrário dos momentos no âmbito urbano, nos quais as conversas são breves e o silêncio interno prevalece, em todos os encontros cercados por natureza ele se depara com pessoas e trava diálogos tão mundanos quanto as situações ali propostas. São nesses ambientes, a princípio quietos, que a conexão humana acontece, a grandiosidade é preenchida com vida e a sensação de pertencimento e completude impera.
Tudo muda quando Stefan conhece Shuxiu (Liyo Gong) em um restaurante chinês na cidade. Se por lá as relações são rápidas e corriqueiras, o reencontro acidental dos dois na floresta acende uma conexão instantânea enquanto observam musgos e líquens. Ela, uma professora de microbiologia e botânica descendente de chineses, parece se sentir tão alheia a um cotidiano apático e desconexo quanto ele. Em mandarim, a personagem revela ter tido um sonho, em que de uma hora para outra esquece palavras, mostrando como se sente uma forasteira ali, como ele. Ambos parecem apenas esperar por uma conexão humana – e a encontram entre seres microscópicos no solo da mata.
Por lá, os diálogos não são necessários para explicitar a ligação que passa a se desenvolver: os atores dão conta de expressar a diferença entre o estranhamento inicial e a familiaridade que se estabelece aos poucos, se não com a cidade, um com o outro. Assim, partindo da grandiosidade da paisagem de Bruxelas e dos altos prédios em construção, a câmera se volta ao solo, ao micro dos organismos na base de tudo.
A mudança do panorama macro para o micro, da vastidão para seres microscópicos, acontece de forma lenta, quase imperceptível. Porém, por mais encantador que seja, para explorar esse comum Devos propõem um verdadeiro exercício de paciência: se a geração atual não vive sem estímulos audiovisuais, vencer um ato completo de musgos, líquens e paisagens verdes sem nenhuma – ou pouca – troca de palavras é uma verdadeira batalha.
Em Here, o ordinário de Bas Devos, ampliado pela fotografia de Vandekerckhove e pela montagem mansa de Dieter Diependaele, se torna completo, mas, para isso, passa por uma calmaria beirando o entediante. Ao final, Stefan e Shuxiu parecem mais conectados após uma tarde quieta na floresta do que no diálogo completo que tiveram na cidade. Ela sequer sabe o nome dele e, quem comprar o desafio de não se render à inquietude e se entregar à tranquilidade, pode encontrar o fantástico no habitual e a beleza em um encontro mais do que comum.