Guilherme Machado Leal
Após o estrondoso sucesso da primeira temporada de Heartstopper, ficou claro que a criadora Alice Oseman possuía uma árdua tarefa pela frente: entregar ao público um segundo ano que não só mantivesse a série no mesmo nível da sua estreia, como também a superasse. Com um orçamento maior, novos personagens e locações, a história centrada no amor de Charlie Spring (Joe Locke) e Nick Nelson (Kit Connor) está mais viva do que nunca.
“Eu gosto do Charlie Spring…De um jeito romântico, não só como amigo” é a frase gritada aos pulmões pelo capitão do time de rugby durante um momento a sós em uma das cenas finais do primeiro ano. Agora, de volta ao Colégio Truham Para Rapazes, os garotos precisam lidar com o seu relacionamento e o medo de sofrerem preconceito, já que, fora da sua bolha composta por jovens preenchidos de orgulho, o cenário vivido por eles é doloroso. Algo que todo e qualquer membro da comunidade LGBTQIAPN+ tem o terrível desprazer de viver, Heartstopper consegue colocar de uma maneira mais colorida e com a seriedade que o tema pede.
Diferentemente dos dois primeiros volumes da HQ, que compreendem a primeira temporada, o terceiro capítulo desse universo é conhecido por ser o início de uma nova jornada com uma carga dramática maior para os dois meninos. Nick está no processo de auto aceitação da sua bissexualidade, enquanto Charlie, que já passou por isso, acompanha o amado e guarda para si os seus maiores demônios. É de se pensar que, como esse novo capítulo trata de temáticas mais pessoais – o transtorno alimentar do garoto de cabelos cacheados e a homofobia do irmão de Nelson –, a série mude o seu tom. No entanto, aqui isso não acontece pois, embora fale de questões já vistas em outras obras, Heartstopper é singular na forma como conta a sua história.
Com sete personagens carismáticos e que poderiam existir no mundo real, a segunda temporada tem a admirável competência de conseguir abordá-los individualmente da maneira correta. Afinal, os anseios dos dois protagonistas não são os únicos que devem ser vistos na Televisão. Reconhecida pela sua diversidade e por abranger o máximo que pode todas as letras da comunidade, o ‘bebê mais precioso’ de Oseman tem nessa nova leva de episódios o seu brilho realçado e engrandecido pelas ótimas entregas do elenco. É perceptível, após o término de cada capítulo, que os atores entendem a importância da presença dos seus papéis para a cultura LGBTQIAPN+.
O amor juvenil, inerente ao processo de maturidade, se personifica como fio condutor da trama principal de Heartstopper. As histórias que permeiam esses jovens e os sentimentos que os afligem é o que torna esse novo momento um mundo recém descoberto. Por isso, as dificuldades vindas do amadurecimento inevitável de qualquer adolescente, aqui, se fazem presentes e ditam o rumo que a narrativa irá tomar. Nesse sentido, a prioridade da segunda temporada é evidenciar a importância das primeiras experiências.
Quando se trata de Charlie Spring, Nick Nelson é altamente protetor. Mas a sua proteção não é nem de longe invasiva. Conhecer o primeiro homem por quem se apaixonou é como se lembrar da primeira vez que sorriu ou sentiu algo diferente dentro de si. É por isso que o loiro popular, dentre todas as pessoas do colégio, tem os olhos direcionados apenas para o menino apaixonante de cabelo cacheado. O amor entre os dois personagens é o que guia e dá sentido a Heartstopper, pois os garotos gostariam de sentir nem que seja uma fração apenas, das faíscas que saem dos corações dos protagonistas a cada interação.
É nesse sentido que se compreende o porquê de Nick se preocupar com os traumas vividos por Charlie. Ele, ao ser tirado do armário, foi forçado a vivenciar o pior que qualquer pessoa queer poderia sentir: o olhar de crueldade dos seus colegas. Por não ter com quem conversar sobre isso e escolher enfrentar essa luta sozinho, internalizou tudo de ruim que ouviu e chegou a se ver como a pior pessoa do mundo – algo que, de certa forma, é um paradoxo, ao ver como o personagem é radiante e genuinamente bom em seus atos. Porém, quem reconhece a bondade de Charlie são os espectadores. Na série, ele só é visto como o ‘gay do colégio’ e, na segunda temporada, isso fica ainda mais evidente.
A conversa dos dois acerca do transtorno alimentar de Charlie mostra, sem sombra de dúvidas, que eles estão juntos em todos os momentos. O relacionamento deles é fundamental para o avanço de ambos em direção ao caminho da aceitação. Nick, durante a temporada inteira, reforça veementemente e com razão a sua bissexualidade. Ele reconhece que a letra B da comunidade é invisibilizada e reduzida a um simples momento de transição entre ser hétero e gay. Então, ter personagens como esse, interpretado lindamente por Kit Connor, é importante para o público que se vê em Nelson.
Com três episódios na cidade de Paris, o amor de Charlie Spring e Nick Nelson alcança outros continentes e só cresce a cada minuto assistido. Eles são pessoas genuinamente boas, mas, infelizmente, para os preconceituosos, como o irmão de Nick, isso não basta. É como se a bondade e a vivência da comunidade fossem dois conceitos antagônicos: você não pode ser luz ao mesmo tempo em que está na sigla. E, ao ver o sufoco passado por Charlie, tem-se a exemplificação desse atestado. Ao final da temporada, há uma cena em que a discriminação cometida por David (Jack Barton) é levada ao extremo, causando intrigas entre a família dos garotos e mostrando que, às vezes, a homofobia vem de dentro de casa.
Por outro lado, conhecidos por serem platônicos desde o começo da série, Tao Xu (William Gao) e Elle Argent (Yasmin Finney) são, pelo menos na adolescência, a alma gêmea um do outro. O garoto não sabe como demonstrar os seus sentimentos, enquanto ela não consegue ter acesso a essa parte dele. Ambos amantes de filmes e maiores fãs de encontros culturais, os pombinhos, ao longo da temporada, tentam manifestar os seus sentimentos. É tão escancarado o amor deles que os demais personagens não veem a hora de seus mundos colidirem.
Pois bem, o primeiro beijo, com direito à sensação mais bonita do mundo, entre Elle e Tao, acontece e eles chegam de uma vez por todas à conclusão que realmente se gostam. Eles exemplificam corretamente o dilema vivido por pessoas muito próximas “Vamos ter um relacionamento? Somos melhores amigos, será que isso não estragaria a nossa relação?”. A partir do momento em que a nova relação surge, a encantadora garota e o teimoso menino não desperdiçam – ainda mais – todo o tempo que ficaram separados e, enfim, têm a chance de sentir o amor.
Diferentemente do casal anterior, Darcy Olsson (Kizzy Edgell) e Tara Jones (Corinna Brown), que sempre tiveram uma relação sem conflitos, possuem as primeiras rixas, inevitáveis em qualquer relacionamento. Darcy, radiante e brincalhona, não consegue sair do piloto automático e precisa transformar tudo em piada. Em um primeiro momento, não dá para entender o porquê de tal atitude. No entanto, conforme estabelecido desde o primeiro episódio, aqui os personagens terão as suas camadas mais profundas analisadas e, com uma ótima cena ao som da canção Seven de Taylor Swift, a personagem convida o público a conhecer um de seus maiores medos e, de quebra, uma das cenas mais lindas de toda a série.
Enquanto isso, devido ao seu crescimento, Tara entende que um bom relacionamento não vive apenas de momentos leves, exigindo de Darcy Olsson um compromisso maior. Ela se sente envergonhada por ter dito à amada o famoso “Eu te amo” e não ter sido correspondida. No entanto, nos oito agradáveis episódios, há o desenvolvimento completo do namoro delas. O que cativa na série dirigida por Euros Lyn é que não há nada que não possa ser resolvido. Desde que haja uma conversa franca, o conflito é solucionado. Os personagens têm um nível de intimidade incomparável e, por isso, é mais fácil terem acesso ao turbilhão de emoções em seus corpos.
No primeiro ano, Isaac Henderson (Tobie Donovan) é um dos personagens com menos aprofundamento. Como um bom fã de livros, o garoto encontra na literatura um refúgio dos perigos que o mundo real nos proporciona. Entretanto, até nos jovens mais tímidos, o amor adentra o coração e, com ele, não seria diferente. Sendo uma ótima representação da assexualidade, o menino é um tesouro para Heartstopper, uma vez que, quando comparados aos outros grupos da comunidade queer, os assexuais raramente possuem um retrato digno na ficção.
Em obras como a de Alice Oseman, é necessário que todos – sem exceção alguma – que estão no arco-íris se sintam representados de uma forma nunca antes vista. No segundo ano, pelas lentes de Isaac, temos o privilégio de ver como o amor possui um conceito diferente em seu coração. Indo em direção oposta ao seu grupo, o garoto não precisa beijar ou realizar atos sexuais para ter o sentimento amoroso e está tudo bem. Pois, nesse mundo, você pode ser o que quiser. Aqui há um lugar seguro para qualquer um que se sente minimamente perdido e a série reconhece e se apoia nisso. Para a sequência, espera-se que o personagem tenha mais cenas, já que a sua trama é uma das mais interessantes de se assistir.
Chegando ao fim dessa bela história de amor, o encontro de dois garotos possibilitou a existência da série adolescente que os jovens precisavam. Aqui, pouco importa o sexo ou o lado mais sombrio dessa fase da vida. O foco é mostrar que a comunidade LGBTQIAPN+ também pode e merece amar. Desde o seu nascimento até o dia da sua morte, essas pessoas são moldadas a se adaptarem à realidade cruel que vivem. São testados, humilhados e questionados diariamente e colocados à prova em tudo que se propõem a fazer. Ter na ficção um momento de celebração de ser quem você é deixa a experiência ainda mais gratificante e confortável de ver.
Com a inocência dando lugar à vida real, o segundo ano de Heartstopper utiliza o que tem de melhor: os seus personagens. Tratando de assuntos graves de um jeito cuidadoso, pode-se confirmar que, nesse universo, a comunidade está segura. Ninguém deveria se sentir só, nem mesmo em pensamento. Alice Oseman, ao criar esse mundo, sabia que as suas narrativas poderiam mudar vidas de inúmeros adolescentes que gostariam de ter aquilo que os heterossexuais vivem há séculos: um amor puro. Fazendo com que o nosso coração bata a cada episódio assistido, a série conquista um lugar único na televisão e dá aos LGBTQIAPN+ um dos retratos mais impecáveis que poderiam ser vistos.