Nossa Penélope Charmosa. Capa do álbum (Foto: Hugo Comte/Warner Music)
Jho Brunhara
Quando Madonna sampleou ABBA em Hung Up, todo apreciador de música pop que se preze sabia que é preciso muita coragem para referenciar diretamente um clássico e ainda soar original, e a rainha do pop o fez. 15 anos depois, Dua Lipa se inspira no próprio Confessions on a Dance Floor de Madonna para fazer uma afirmação: a música disco ainda tem algo a dizer para as novas gerações.
Lançado antecipadamente no dia 27 de março, após as músicas vazarem na web e em meio a pandemia do coronavírus, Future Nostalgia não era só mais um CD muito esperado pela internet. O hype gerado pela sleeper hit Don’t Start Now e pela estrondosa Physical transbordava o tanque de expectativas daqueles isolados em casa, famintos por uma nova obsessão. E Dua Lipa entregou um banquete.
Vintage é o novo vintage (Foto: Hugo Comte/Sunday Times)
Future é óbvio ao mesmo tempo que tenta não ser: assim como o paradoxo de um futuro nostálgico, desde o começo de uma era visualmente poderosa e atenta aos detalhes de seu conceito, Lipa indicava com todas as letras que estava resgatando a energia disco. Na verdade, não havia muito mais a ser tirado do porão dos anos 80. Já faz algum tempo que os cabelos perderam volume e a estampa de oncinha deixou de combinar com neon, mas a sonoridade da época foi reciclada, e agora, re-reciclada, por se assim dizer.
Kylie Minogue, Madonna, Daft Punk, Carly Rae Jepsen, e mais recentemente Bruno Mars – com seu 24K Magic, ganhador do Grammy de álbum do ano –, entre tantos outros artistas que buscaram suas inspirações nos flashbacks. Se apoiar no som dos anos 80 e 90 não garante qualidade, mas Dua sabe muito bem disso.
O álbum proclamado oitentista-futurista é minucioso e genuíno na medida do possível, nunca deixando de lado a diversão, extremamente bem-vinda em um 2020 tão pesado. Cheio de mid-tempos dançantes e sem baladinhas para quebrar o clima, a britânica faz o uso perfeito de baixos, sintetizadores, e instrumentos reais para dar um tom fiel ao seu segundo disco.
Além do trabalho de produtores de longa data como Ian Kirkpatrick, Jeff Bhasker, Stephen Kozmeniuk e Stuart Price para o disco, a música ‘Cool’ contou com a co-composição da talentosíssima Tove Lo (Foto: Hugo Comte/Warner Music)
Physical é, sem dúvidas, o clímax do CD. Como descer uma ladeira correndo, a faixa grita seu refrão do fundo dos pulmões de Lipa, com um fôlego a mais para a ponte. Pop perfection, club perfection, qualquer-outra-coisa perfection. Mas não dá o norte ao LP. Levitating desacelera a Bonnie Tyler interior da faixa passada, e pavimenta o caminho por uma viagem no tempo e pelo core do Future Nostalgia.
Ali, uma faixa que poderia facilmente estar no lendário Fever, de Kylie. Aqui, violinos que parecem ter sido colocados a mão pela própria Madonna. E então, a genial Break My Heart. O coração partido que tanto movimenta a música nos dá mais um presente, pra dançar segurando as lágrimas. É sad disco.
“O que eu queria com esse álbum era sair da minha zona de conforto e me desafiar a fazer músicas que poderiam estar ao lado dos meus clássicos favoritos do pop, e ainda fazê-las soar fresh e unicamente minhas”, afirmou Dua em coletiva de imprensa (Foto: Hugo Comte/Warner Music)
A alma do LP, composta de pequenos quadradinhos de espelho, é uma grande homenagem às inspirações da artista, mas ainda assinada pela própria, sem perder sua identidade ou se perder no que quer referenciar. E ainda que as duas músicas finais destoem um pouco da proposta, são o que fazem o Future Nostalgia ser de Dua Lipa e de mais ninguém.
Good In Bed ecoa como um pop britânico perspicaz, sexual e muito divertido, quase como se tivesse saído da brilhante mente de Lily Allen, mas algo mais próximo dos anos 2000. A literal e mais modernex sonoramente Boys Will Be Boys encerra a versão standard como uma afirmação política, recado de extrema relevância deixado para a juventude de mulheres que já se inspiram na cantora. Talvez aqui o maior erro do disco, não de ter incluído uma música tão importante no projeto, mas sim colocá-la em uma versão normal ao em vez de deixar para uma edição deluxe, onde se encaixaria melhor.
Em um mar de trap usado a exaustão na indústria fonográfica mais mainstream – raramente de forma sábia e consistente, como merece ser tratado –, o velho conhecido disco é um respiro. É uma decisão inteligente, é seguro no que quer ser e faz um serviço essencial pelas pistas de dança do mundo todo. Ano após ano, clama-se nas redes sociais por algum artista que salve o pop, e esse bastão foi passado agora para Dua. A verdade é que ele não precisa ser salvo, e nunca correu perigo. A música só passa por ciclos, e projetos ambiciosos se manifestam constantemente entre nós, debaixo dos holofotes, mas principalmente fora deles.
Seguindo os passos do debut de Lipa, o presidente da Warner Records UK confirmou que a campanha de divulgação do CD deve durar dois anos, o que fortalece chances de uma versão deluxe e um provável relançamento com novas músicas (Foto: Hugo Comte/Warner Music)
Future Nostalgia é poderoso, é astuto e é viciante, mas não traz nada de muito futurístico, nada que não vimos Kylie, Madonna ou a própria Dua Lipa fazer. É mais uma afirmação de como a artista se porta no agora, no presente, servindo qualidade exemplar do que acredita. Mas isso não é demérito nenhum: lançar um álbum à la revival, dentro das expectativas e com algo a dizer para a história da música é mais que uma vitória.
A maior questão que fica é se a pretensão do verso que abre o disco estava correta – “You want a timeless song, I wanna change the game” –, ou se não irá sobreviver ao teste da memorabilidade. E isso, só o futuro dirá.