Ana Beatriz Zamai
Lançada em Novembro de 2016, The Crown, série original da Netflix, chegou ao fim depois de seis temporadas mostrando a vida por trás dos portões do Palácio de Buckingham. Criada por Peter Morgan, que já produziu outros trabalhos sobre a monarquia inglesa, o drama focado na Rainha Elizabeth II retrata os acontecimentos desde 1940, quando, para o bem ou para o mal, Elizabeth Alexandra Mary se tornou rainha após a súbita morte de seu pai. Desde então, o seriado passou pelo casamento da então princesa com o príncipe Philip, a vida conturbada de sua irmã Margareth, o nascimento e crescimento de seus filhos e netos, as preocupações com os primeiros ministros, e, no final, a polêmica morte da princesa Diana.
Diferentemente do que fez nas outras temporadas, a Netflix dividiu o lançamento em duas partes: a primeira, com quatro episódios focados nos acontecimentos de antes, durante e depois da morte de Lady Di, foi lançada em Novembro de 2023. Já a segunda parte, com seis episódios, mostra o fechamento do arco de alguns personagens da família real – inclusive o da própria Rainha – até o início da década 2000, e estreou em Dezembro de 2023.
Usando uma técnica já utilizada anteriormente durante a produção, a temporada começou com uma visão telespectadora da morte da princesa Diana. Um homem parisiense desconhecido pelo público, passeia com seu cachorro e vê a forte batida de carro que aconteceu no dia 31 de Agosto de 1997, no Túnel da Praça de l’Alma, em Paris. Porém, há um flashback e, ao longo dos próximos episódios, assistimos à pré-morte de Lady Di (Elizabeth Debicki).
Com uma performance brilhante que lhe rendeu um Globo de Ouro de Melhor Atriz Coadjuvante e um Critics Choice Awards na mesma categoria, Elizabeth Debicki incorporou cada detalhe da princesa. Seja na caracterização, quase sempre fidedigna, ou na personalidade, a atriz australiana conseguiu mostrar os trejeitos que Diana demonstrava ao público: o jeito tímido de falar, o costume de abaixar a cabeça, o olhar como de uma criança querendo algo, além da forma de movimentar as pernas e braços específicos de Lady Di.
Apesar da boa atuação de Debicki, o roteiro de Peter Morgan deixou a desejar em algumas cenas da atriz. Utilizando ações e diálogos desnecessários, é como se a produção quisesse se aproveitar da paixão do público pela ‘Princesa do Povo’ para explorar seu uso sempre que possível, tornando a personagem protagonista de uma história que não deveria ser focada apenas nela. Esse fator fica visível na relação com Dodi Al-Fayed (Khalid Abdalla), quando mostra acontecimentos que, por mais parecidos que sejam com a realidade, ocuparam tempo de tela que poderia ser utilizado em outros arcos.
Além desse desperdício, outro erro da temporada foi colocar Mohamed Al-Fayed (Salim Daw) ou Moumou, forma que Diana o chamava, como o vilão da história trágica da princesa, mesmo que sutilmente. A intenção do personagem, conforme mostrado na série, era fazer Lady Di se apaixonar por Dodi, para que, futuramente, se casassem e ele finalmente conseguisse a tão sonhada cidadania inglesa, negada pelo governo anteriormente.
Porém, apesar de Annie Sulzberger, chefe de pesquisa da série, ter dito que as diferenças entre o real e o ficcional seriam intencionais e feitas para se desviar da história, essa mudança pode ter prejudicado a imagem do seriado, que, nas temporadas anteriores, mostrava os fatos históricos junto com momentos ficcionais, mas não afetava a imagem de nenhum personagem. Esta, no entanto, vilaniza os Al-Fayed, colocando-lhes a culpa por algo nunca provado e, com a morte recente de Mohamed, sem possibilidade de defesa.
No episódio Two Photographs, essa falha aconteceu novamente quando, agora, como um casal, Diana e Dodi foram flagrados aos beijos em um iate em Sardenha pelo fotógrafo Mario Brenna. Registros esses que, supostamente, Al-Fayed teria ajudado a acontecerem, ao divulgar o local onde o casal estava e pagar para o paparazzi tirar. Entretanto, em entrevista, Brenna disse que estava na cidade por outros famosos e que encontrar o casal foi um “grande golpe de sorte”.
Ainda neste episódio, a Fotografia, assinada pelo brasileiro Adriano Goldman, indicado ao Emmy pelo seu trabalho em The Crown, e a direção de Christian Schwochow se destacam. Intercalando entre o fotógrafo de Diana e Dodi, e um segundo, mais velho, sempre presente em acontecimentos da família real, a série trouxe bastidores da vida dos dois e a diferença do trabalho dentro da mesma profissão. O primeiro, paparazzi, usado em uma tentativa de revelar segredos. O segundo, convidado por Charles (Dominic West) para fotografar ele e os filhos em Balmoral, em uma tentativa de apaziguar esses mesmos segredos. Mais uma vez, as figurinistas Amy e Sidonie Roberts, e demais funcionários por trás da série brilharam, pois Charles, William (Rufus Kampa) e Harry (Fflyn Edwards) estavam idênticos à foto original, com as mesmas poses, principalmente William.
Para finalizar a primeira parte, um episódio tenso é minuciosamente elaborado. Apesar de o público já saber o trágico destino da princesa Diana, a série conseguiu trazer uma certa esperança de que os acontecimentos seriam diferentes e o acidente não aconteceria. A produção, novamente, nos deixa com a sensação de que, caso Mohamed não tivesse feito ou falado algo, talvez Lady Di estaria viva. Se não tivesse convidado Diana e Dodi para passarem as férias no iate, se não tivesse pressionado o filho para namorar com ela, se não tivesse chamado o paparazzi, se não tivesse chantageado em relação ao casamento.
Depois de uma conversa profunda, o casal saiu pelos fundos do hotel, em um carro dirigido por Henri Paul, que havia consumido álcool. A combinação do motorista bêbado e a alta velocidade do carro para fugir do paparazzi fez com que o veículo se chocasse em um dos pilares do túnel da Ponte de l’Alma, voltando ao começo da temporada, quando um homem aleatório vê a cena e liga para socorristas, finalizando a história de Diana e Dodi, de uma forma que, apesar de triste, foi realista.
Já na segunda leva de episódios, o foco deixa de ser Diana e volta a ser a família real. Assumindo um lado mais cinematográfico, que não estava presente nas temporadas anteriores, The Crown traz aparições fantasmagóricas de Lady Di, em conversa com Charles, seu ex-marido, que, talvez exageradamente, mostra-se triste e arrependido por ter ajudado a trazer infelicidade para sua vida. A sensação que a cena traz é de uma bajulação, um ‘puxa-saquismo’, em termos populares, por parte da Netflix em relação ao agora Rei Charles.
Essa tristeza excessiva de Charles se mostra até contraditória em partes, pois ao longo do seriado, quando não brigava com ela para defender sua relação com Camilla Parker-Bowles (Olivia Williams), amante com quem mantinha uma relação desde antes de Diana, demonstrava superioridade e incômodo com o fato de ser adorada pelo público. O mesmo acontece com Mohamed e Dodi: o pai também tem uma visão fantasmagórica e os dois conversam sobre arrependimentos que tiveram um com o outro, além de como se amavam, apesar das brigas. Essas aparições seriam muito bem vistas e agregadas à série caso esse lado mais cinematográfico tivesse sido adotado anteriormente, durante as outras temporadas. A mudança inesperada causou estranheza no público, que estava acostumado apenas com fatos reais e pequenas mudanças entre a realidade e a ficção.
Enquanto enfrentava uma reação negativa do público por não dizer nada a respeito dos acontecimentos, a Rainha também tem uma visão de Diana, que a pede para acabar com a sensação que a população tinha de que a princesa e a família real eram inimigas. Para isso, Imelda Staunton faz uma perfeita atuação em um discurso televisivo no qual presta uma homenagem à falecida nora. Estando visualmente idêntica à Elizabeth, Imelda conseguiu passar exatamente a mesma frieza que a verdadeira Rainha. Essa talvez tenha sido uma das cenas mais bem produzidas da sexta temporada, tanto em relação ao figurino, quanto ao cenário e a interpretação de Imelda.
Além do exemplo já citado anteriormente da vilanização dos Al-Fayed, sutilmente culpando-os pela morte de Diana e sendo desrespeitoso com o acontecimento, outra característica marcante foi a falta de interesse em explorar mais o príncipe Harry, interpretado por Luther Ford, que, aliás, não se parece fisicamente com o caçula da princesa em nada, a não ser pelo cabelo ruivo. Na segunda parte, nos poucos momentos em que ele aparece, é sempre com a personalidade de garoto-problema, que, apesar do envolvimento em uma polêmica com uma fantasia nazista, nunca se mostrou, ao menos não na mídia e durante os anos apresentados na série, como um rebelde.
Enquanto Harry passa quase despercebido, sem dizer ao telespectador como sua vida seguiu, como foi sua escola ou seu luto pela mãe; seu irmão William foi um dos focos na segunda parte do final. Ed McVey agiu como se conhecesse William por sua vida toda: além da semelhança física, o ator performou brilhantemente. Um de seus destaques foi no primeiro episódio focado nele, Willsmania, em uma cena na qual discute com o pai, príncipe Charles, e o acusa de ter causado a morte de sua mãe. Vemos o personagem ser comparado à Diana, sua timidez em relação às multidões e milhares de fãs, e, protagonizando com a estreante Meg Bellamy, no papel de Kate Middleton, o começo da história do casal.
Apesar de estar iniciando como atriz, Meg Bellamy fez uma boa atuação, mas o roteiro não facilitou o bom entendimento de sua história. Mesmo trazendo novamente a situação de vilões, dessa vez, a Netflix acertou. Mostrar que a mãe da Kate, Carole (Eve Best) arquitetou todo o relacionamento de William e a filha, faz parecer que é mentira, quando, de acordo com biógrafos da família real, isso de fato aconteceu. Porém, em alguns momentos, o roteiro ficou confuso, com a jovem se revoltando com a matriarca por planejar tudo em alguns momentos, e, em outros, parecer concordar e seguir o plano. Além da situação ter ficado confusa, a série não explorou todo o conteúdo que William e Kate poderiam ter entregado, como o primeiro encontro com a rainha e um melhor desenvolvimento da relação dos dois.
Dentre os primeiro ministros apresentados ao longo das temporadas, tivemos o último, Tony Blair, do Partido Trabalhista, interpretado por Bertie Carvel, que fez parte da vida da Rainha de 1997 a 2007 e foi o primeiro a fazer Elizabeth se questionar sobre sua popularidade, modernidade e futuro na monarquia. Por ser o único que afetou a Rainha desta forma, a ponto de ser chamado de Rei Tony pelo público, poderia ter sido mais bem explorado, principalmente sua relação com o público e com o governo dos Estados Unidos, fato bem importante na história mundial.
Em mais um fechamento de arcos, The Crown fez um episódio diferente, Ritz, focado na Princesa Margaret, que já teve seu foco nas primeiras temporadas quando ainda era interpretada pela brilhante Vanessa Kirby. De volta a 1945, no Dia da Vitória na Europa, as jovens Elizabeth e Margaret (Viola Prettejohn e Beau Gadsden, respectivamente) são apresentadas aos telespectadores, e vivem uma noite especial no Hotel Ritz, mostrando um lado de Lilibeth que ninguém conhece.
Mesclando momentos desse acontecimento e de Margaret no começo da década de 2000, a série traz um dos episódios em que o público cria uma empatia e um carinho especial por um personagem. Com a intenção de cativar o público da mesma forma que Vanessa Kirby fez anteriormente, Lesley Manville faz uma ótima interpretação da Princesa Margaret para representar seus últimos anos de vida. O roteiro, escrito por Meriel Sheibani-Clare e Peter Morgan, junto à direção de Alex Gabassi, torna esse episódio o melhor da temporada: a conclusão da história de uma personagem tão querida e admirada pelo público, com flashbacks de sua infância que não haviam sido mostrados antes, além da certeza da amizade que Margaret e Elizabeth tinham. Ao fim do episódio, descobrimos que a princesa morreu durante o sono, em 2002.
Pouco tempo depois, a Rainha-Mãe, também Elizabeth, morreu aos 101 anos. E é só aí que a série volta a focar no principal: a própria Rainha Elizabeth. Com a perda de duas das pessoas mais próximas a ela, é forçada a pensar na Operação London Bridge, sua morte. Quando lhe cai a consciência da idade avançada que possui junto à popularidade de seu primeiro ministro, a Rainha tem uma conversa com suas versões mais novas trazendo o retorno das atrizes Olivia Colman, que interpretou a Rainha nas terceira e quarta temporadas, e Claire Foy, que esteve nas duas primeiras temporadas.
A presença das duas versões de Elizabeth aconselhando a mais velha foi uma ideia brilhante, que relembrou o telespectador os tempos que o programa já viveu, das histórias já concluídas e das que iriam se concluir. Durante a conversa, a Rainha fala para si mesma que “Monarquia é algo que você é, não que você faz”, e desiste da ideia de entregar a Coroa à Charles, que se casou com Camilla no episódio final. Mesmo com o mundo inteiro a olhando, a Rainha sabe que, no fim das contas, quem a ajuda é ela mesma, pois só ela sabe o que viveu.
Por fim, em uma cena brilhantemente dirigida por Stephen Daldry, a Rainha de Imelda imagina seu funeral, com seu caixão e suas duas versões presentes ao seu lado. Apesar de não mencionar diretamente a morte da Rainha Elizabeth II, que ocorreu em 2022, esse final nos deixa com a sensação de que aquilo foi uma homenagem, por mais sucinta e singela que seja. Uma homenagem para todas as versões da Rainha: Elizabeth II, Imelda Staunton, Olivia Colman e Claire Foy. E aos telespectadores, por terem acompanhado desde o início e terem sentido, mesmo que de longe, o peso da Coroa inglesa.
O final não foi tão espetacular quanto o esperado, se comparado às outras temporadas, principalmente, as duas primeiras. Por ser o desfecho definitivo, poderia ter passado brevemente pela conclusão da história de demais personagens quase não mencionados durante a série: os filhos de Elizabeth (Anne, Andrew e Edward). Mas, com as boas atuações de todo o elenco, com destaque para Elizabeth Debicki, Ed Vey e Lesley Manville, e o fechamento devido de personagens importantes e agradáveis ao público, The Crown cumpriu seu papel de forma incrível e provou que, quando o destino convoca, até os monarcas devem comparecer.