Fahrenheit 451: Alienação, ideologia e fogo

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Vitor Guatelli Portella

“Onde se lançam livros as chamas, acaba-se por queimar também os homens”.

A leitura é ferramenta mais poderosa de esclarecimento da humanidade. Livros são objetos de valor inestimável para uma sociedade. Um mundo sem livros é um mundo à mercê do supérfluo, da ignorância e da submissão. Somos formados pelo o que lemos, pelo o que nossos pais leram e pelo o que os pais de nossos pais leram. A emancipação vem da reflexão.

É sempre bom lembrarmos das grandes obras escritas durante o século XX que conversam com a nossa realidade contemporânea ocidental do século XXI. O mundo mudou, mas haviam pessoas que já o imaginavam além do que seria o nosso presente em relação às tecnologias, às nossas relações sociais e às nossas formas de governo. Mentes brilhantes e lúcidas escreveram distopias: descrições de “um lugar fora da história, em que tensões sociais e de classe estão aplacadas por meio da violência ou do controle social” – de acordo com Roberto de Sousa. Histórias fictícias que acabaram por nos fazer refletir sobre o nosso mundo contemporâneo.

O autor Ray Bradbury: escritor americano.

O escritor americano Ray Bradbury publicou em 1953 o seu livro Fahrenheit 451, num contexto pós-guerra dominado pelo totalitarismo. Juntamente com o Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley e a dupla 1984 e Revolução dos Bichos de George Orwell, Ray completou a tríade de autores clássicos do século passado que possuem uma voz expressiva e condizente com o mundo em que vivemos hoje, fisgando aspectos sociológicos e filosóficos que abordam a alienação, o controle e a evasão daquilo do qual não entendemos, ou o que a sociedade deixou de entender. Seu livro nos traz uma distopia em formato de romance que, de certo modo, sua essência já foi presenciada na história do mundo: em 1933 os nazistas queimavam livros de escritores intelectuais em plenas praças públicas.

Nazistas queimam obras literárias de intelectuais em praça pública, 1933
Nazistas queimam obras literárias de intelectuais em praça pública, 1933

Fahrenheit 451 se passa num mundo onde a leitura, o consumo, a venda e a posse de certos livros considerados inúteis, ou perigosos, é proibida por lei na sociedade. As cidades se tornaram a prova de fogo para facilitar o papel dos bombeiros na queima de livros proibidos. Sim, bombeiros queimam livros. Pois, no mundo de Bradbury, os bombeiros são agentes de higiene pública que possuem a função de, ao invés de apagar o fogo, ateá-lo, queimando livros para evitar que os sonhos e a imaginação prejudiquem a função dos cidadãos honestos. Estes que se encontram constantemente presos a medicamentos narcotizantes de efeito humorístico (um ponto de contato com a obra Admirável Mundo Novo) e sob a onipresença de aparelhos televisores que os alienam diariamente (outro ponto de contato, agora com 1984). Ou seja, as pessoas são privadas de pensar, refletir e questionar através de conhecimentos apresentados em livros.

A trama do romance conta a história do bombeiro Guy Montag, morador de uma cidade americana sem nome, que atravessa uma crise ideológica após conhecer sua vizinha Clarissa McClellan, uma garota de onze anos que se diz ser “estranha” por ter a mania de questionar tudo e a todos. Através de conversas diárias na rua, é ela quem o desperta da realidade fictícia da qual ele estava completamente submerso, trazendo à tona pensamentos que antes poderiam estar escondidos em sua mente, e seu desaparecimento leva Guy a se rebelar contra a polícia e o sistema que o controla.

Além dessas duas personagens, Guy contrasta com um terceiro sujeito: Beatty, o chefe dos bombeiros da cidade. Tendo um papel de inquisidor profundamente ligado à sua profissão, essa personagem faz o “outro lado” da visão de Clarissa e é constantemente questionado por Guy em relação as suas ações. O fogo é a sua alma e percorre suas veias, acreditando que a verdade que lhe é apresentada é, e sempre foi, a verdade absoluta.

A adaptação do livro para o cinema veio em 1966, dirigia por François Truffaut
A adaptação do livro para o cinema veio em 1966, dirigida por François Truffaut

A trama também vai muito além do enfoque crítico do qual o livro faz sua propaganda. Temas de grande profundeza psicológica como o amor, mostrado através da relação complicada entre marido e mulher de Guy e Mildred, e a solidão, pela imersão e representação do que se passa dentro da cabeça de Montag, dão suporte, veracidade e autenticidade à trama.

É sobre isso que se trata a obra de Bradbury, assuntos que se aprofundam muito mais numa sociedade com propensões totalitárias, de caráter policialesco e onde a individualidade é sacrificada. As massas são marionetes das elites, ainda que essas são dependentes das próprias massas, formando uma servidão voluntária criada pela sociedade do espetáculo. Mas se compararmos aos outros grandes livros distópicos, Fahrenheit 451 ainda se mantem naturalista em sua ficção, pois não vai muito além da realidade que experimentamos atualmente com relação às tecnologias.

Acompanhamos o questionamento, a reflexão e a rebeldia de Guy e Clarissa perante um mundo produzido industrialmente para tornar as pessoas artificialmente felizes, forçadamente satisfeitas e o mais distantes possíveis de uma possível oportunidade de mudança dessa estrutura. Esse é o efeito da obra de Bradbury na sociedade, um questionamento do sistema em que nos encontramos constantemente inseridos e uma reflexão que possui grande profundidade no assunto.

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